“Tia, como é que se apaga a memória?” perguntou-me, há umas semanas, o meu Um. Não se apaga, Miguel. Respondi-lhe que a memória funciona como uma série de gavetas onde se guarda tudo e onde é mais fácil aceder a umas do que a outras, mas que nunca podemos apagar a memória.
Ao mesmo tempo repetia para mim mesma “não se apaga. Não se apaga, mas era tão bom que se apagasse…”
“Mas eu quero apagar a memória, tia. Quero apagar a memória de ti” respondeu-me meio a rir, meio sério. Ri-me com ele. “E quero que tu apagues a memória de mim” riu-se novamente. Ri-me com ele e disse que isso era impossível, porque ele é o meu Um, parte do meu Todo. Mas, cá dentro, respondia-lhe em segredo que também queria apagar tantas coisas…nunca ele, o meu Um, nunca o meu Dois. Mas o resto…
…o que foi não sendo, ou o que não foi sendo, ou lá o que foi que não foi mas foi!
Não, não é doentio contar os dias. Conto-os. Todos. Para poder olhar para trás e perceber as diferenças entre o dia 469 e o dia 10. Ou mesmo o dia 1 ou o dia 180.
Não, não é doentio olhar para memórias de Facebook, responder a comentários antigos, ou mesmo deixar likes aqui e ali a comentários de outros tempos, de outra vida. Não o faço pelos outros, faço-o por mim, porque de alguma forma me tocam.
Não, não é doentio querer entender o que se passa quando percebo que algo de errado se passa. E pergunto para perceber. E perguntarei as vezes todas que forem necessárias até que me expliquem. Até que me expliques! Porque alguma coisa mudou. E sim, eu mudei. Tanto, ao longo destes 469 dias depois de 19 depois de 42. Porque esses 19 dias depois desses 42, mas especialmente esses 42 mudaram-me. Muito. Tanto que em tantas ocasiões não me reconheci. Outras ainda não me reconheço.
Não, não é doentio querer falar sobre o que aconteceu, mesmo que na minha cabeça ressoe a célebre frase “se não aconteceu não é para ser falado”. É. É para ser falado. Porque doentio é fazer de conta, continuar a fazer de conta que nada se passou. Porque na verdade aconteceu. Foi como foi, como tinha que ser, ou como podia ser, ou seja o que for! Foi o que foi, como foi.
Dói ainda. Muito. Mas dói muito mais pontas soltas, desconversas, ataques sem sentido quando tudo o que procuro é entender o que se passa neste momento. O que foi que mudou de um dia para o outro, uma mudança de 180 graus. Da água para o vinho. Ou melhor, do vinho para a água…
Não, não é doentio lembrar-me todos os dias daquela imagem que se recusa a sair-me da cabeça e que me dói e que teima em continuar a doer, e que teima em não me largar por muito que não a procure. Porque foi a confirmação do fim. Porque foi a confirmação que sim, um dia, 42 dias, estive grávida até que deixei de o estar. Um dia, 42 dias, tive um ser dentro de mim a formar-se, a crescer, até que deixei de o ter. Até que me despedi dele da forma mais cruel e dura e dorida. E essa imagem, que apenas eu vi e que era real e não fruto de imaginação, que era palpável, essa despedida, essa dor está cá. Não passa, por muito tempo que passe. Por muitos dias que conte. Por muitos dias que diga a mim mesma que sobrevivi a mais um dia de memórias que doem.
Doentio? Doentio é não falar. Não poder falar. Quando o que quero é esquecer. Falar para esquecer. Conversar para esquecer. Para encerrar um capítulo que, sei, nunca será encerrado totalmente porque fará sempre parte de mim. Doentio é guardar tudo cá dentro e ser corroída todos os dias por algo que nunca desejei conhecer. Dor. Sim. É dor. Que chega a ser física. Que chega a sufocar. Que chega a apertar. Dói. Muito.
Doentio é ter que aguentar e suportar, sozinha, esta dor. Que, sei, é minha. Apenas minha. Nunca o foi de outra maneira. Sim, acredito que nunca foi mais do que apenas minha. Gostava de acreditar que não, mas é.
Sim, há tanto ainda por conversar. Para falar. Para ser dito. Para ser sentido como numa espécie de catarse. Lamento, mas há ainda tanto para ser resolvido.
Não gosto de pontas soltas. Não gosto de histórias mal resolvidas. E por isso insisto porque gosto, sempre, de perceber o que se passa quando algo está tão errado. Como agora. Porque está.
Sim, escrevo para mim. Mas hoje não em exclusivo. Hoje tento despejar no éter aquilo que, pelos vistos, não posso dizer a quem tenho que o dizer. Porque sei que não será lido. E, mesmo que o seja, nunca será respondido.
Tanto ainda por dizer………tanto ainda por entender. E tanto ainda a doer.
Não. Nada disto é doentio. Doentio é continuar a fazer de conta. Como nos últimos 469 dias depois de 19 depois de 42. Eu gostava de conseguir fazer de conta. Mas o que trago cá dentro não mo permite. Por isso escrevo todos os dias. Para me lembrar das pequeninas coisas que dão cor e valor aos dias, mesmo os mais negros. E para poder olhar para trás e perceber o caminho que já percorri. Que foi feito de altos e baixos. E de baixos muito, muito, muito baixos e sozinha quando não o devia ter sido. Porque se continuou a fazer de conta.
Dói. Não faço de conta, não quero fazer de conta, não posso fazer de conta que não dói. Mas também não posso fazer de conta que entendo o que se passa quando não entendo mesmo. E esse não entender, esse não falar, esse desconversar, apenas me confirma que sim, esta dor é exclusivamente minha. Quando não deveria ser.
A memória. As memórias. Está cá tudo. Gostava de poder apagá-la. Não posso. Mas posso tentar guardá-las, às memórias, todas, numa gaveta. Só peço que não a abram, à gaveta. E que, em abrindo, não remexam. Porque remexer nessa gaveta é o mesmo que reabrir uma ferida que ainda não cicatrizou. Porque cada vez que essa gaveta é remexida, cada vez que essa ferida é reaberta, dói. DÓI! Muito! E eu estou cansada dessa dor………tão cansada dessa dor. E não é preciso muito para abrir a gaveta e remexer em cada minuto, em cada segundo desde o primeiro momento. E vem tudo à tona novamente. Tudo o que senti, tudo o que ainda sinto, físico ou não. E eu não quero mais…não posso mais, não aguento mais. Mas lido com isso. Todos os dias. Sozinha. Sozinha! À minha maneira. Da única maneira possível: um dia atrás do outro atrás do um. Contando os dias. Todos.
……porque estou cansada de fazer de conta. Porque aconteceu. Porque sim, estive grávida. E não, não tenho o meu filho. De quem sinto saudades como nunca senti de ninguém. A quem amo como nunca amei ninguém. Mas não tenho o meu filho. Nem nunca o terei. Nem nunca o poderei ver. Nem ouvir. Nem ver a crescer. Nem ver a mudar com a idade. Nem ter mil imagens diferentes dele com o passar dos anos. Porque a única imagem que tenho, está-me cravada na memória como que a ferro quente: o dia em que o meu corpo o expulsou. E dói. Muito. Tanto. Demasiado. E doentio não é sobreviver a isto. Doentio é, repito, fazer de conta……e eu estou cansada, tão cansada, de fazer de conta que não dói. Que já não dói…