Category Archives: {#Capítulo2_2017}

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De tentar ver, sempre, as coisas positivas: 18h23m, ainda não é de noite.

E o facto de ir começando a perceber que não estou tão sozinha como tantas vezes me sinto.

Obrigada a quem, de uma forma ou de outra, está. Quem não está, paciência.

A minha prioridade? Eu. Pela primeira vez aceitar e assumir que primeiro estou eu. Chega de fazer seja o que (o que for…) porque “os outros primeiro”. Primeiro eu. Agora, primeiro eu. Tratar de mim. Cuidar de mim. Aprender a gostar de mim. Aprender a aceitar que eu sou eu, não sou os outros. Aprender a aceitar as minhas qualidades, os meus defeitos e os meus erros. Especialmente os erros. E sobreviver-lhes. 
(o caminho ainda é longo. Promete, também, ser ainda muito dorido. Violento até, como nos últimos dias. Ninguém disse que ia ser fácil. Nem eu alguma vez pensei que fosse. Nunca imaginei, no entanto, que pudesse ser tão violento. Dorido já o sabia. Violento desconhecia…) 

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Umas vezes sei que irei sobreviver a isto. 

Outras vezes duvido. Como hoje. 

Não me deixem cair……… 

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The thing about pain is it demands to be felt.

Ou, para alcançar a cura é preciso enfrentar a doença.

Como quando, na infância, esfolava os joelhos. Era preciso desinfectá-los, tratá-los e dar-lhes tempo e ar para cicatrizarem. Trocar os pensos era sempre penoso. A água oxigenada não ardia na pele esfolada mas não era confortável na ferida aberta. A crosta que acabaria por se formar lembrava que o processo ainda estava no início, que cada novo toque ainda era doloroso, que tudo era ainda demasiado frágil e que facilmente sangraria de novo.

Hoje, 919 dias depois de 42, foi dia de tirar o penso. Que, como todos os pensos nos joelhos de infância, nada mais é que uma solução provisória. Que protege de eventuais infecções, é certo, mas não deixa respirar.

Foi dia de mexer na ferida. Que está, ainda, demasiado aberta. Demasiado exposta. Demasiado grande. Demasiado dolorosa.

Tirei o penso a medo. Foi, como sempre era tirar os pensos dos joelhos, doloroso. Expôr a ferida por completo aos olhos de quem sabe como desinfectá-la, limpá-la, tratá-la e, quem sabe, curá-la. Ou, pelo menos, ajudar a cicatrizá-la.

João, nome de mãe e pai. Pela primeira vez assim, completo. Um esboço do primeiro retrato que o tempo fez desaparecer quase por completo do papel térmico. E que, por me ser tão importante esse primeiro retrato, esboço a grafite no papel. 20 de Julho de 2014, 18h43m, 4 semanas + 2 dias, 30 dias.

João, nome de mãe e pai. Pela primeira vez assim, completo. Nome próprio há tão pouco tempo, nunca me tinha ocorrido conhecer-lhe o nome completo.

É um nome que é meu. Porque é o nome do meu filho. Mesmo que o meu filho não esteja aqui, visível, palpável, audível, é o meu filho. Que merece ter nome, próprio e completo de mãe e pai. Porque, mesmo que o meu filho não esteja aqui, visível, palpável, audível, cresceu em mim durante 42 dias. Existiu. Foi real. E foi visível.

Não posso continuar a fazer de conta. Fazer de conta que não existiu, que não cresceu, que não foi visível. Estou cansada de fazer de conta. Ou, pelo menos, de tentar fazer de conta. Não me importa se sou a única a recordá-lo. Se sou a única a amá-lo. Se sou a única a sentir-lhe a falta. Não importa. Porque, na realidade, fui a única que o conheceu, que ele conheceu. Fui a única que o teve a crescer dentro do corpo. Fui a única a vê-lo, com 42 dias, quando o meu corpo o expulsou. Fui a única a querer tê-lo para sempre comigo. Fui a única a pedir-lhe perdão por não ter conseguido ser melhor.

Fui a única a assumir-lhe um nome. João, de nome próprio. João, nome completo de mãe e pai.

Mexer na ferida que precisa de ar para respirar e cicatrizar fez-me perder, de novo, a capacidade de respirar eu mesma. Fez-me perder, novamente, aquele falso equilíbrio que tentava manter, aquela falsa serenidade que, por ser falsa, me continua a consumir.

Não posso forçar a cicatrização, não posso forçar a cura. Mas posso tentar o meu melhor para, para já, limpá-la, desinfectá-la, tratá-la. Mesmo que ainda tenha que mudar o penso inúmeras vezes. Num processo que alguns chamam de luto que nunca fiz. Num processo que devia ser feito, desde o início, a dois. Num processo que tenho feito sozinha desde o primeiro dia depois de 42. E que hoje me recordam que “gostava que não dissesses ‘sozinha’ e sim ‘sem o apoio do pai’, porque não estás sozinha. Eu estou aqui. Contigo e para ti. E vou estar sempre.”

João, nome completo de mãe e pai. Não sozinha, mas sem o apoio de. Sozinha de qualquer forma, porque sem João, nome completo de mãe e pai. Mas que trago comigo todos os dias desde o primeiro dia. E que continuarei a trazer. Porque aconteceu. Porque foi real. Porque é o meu filho. Porque sou mãe.

João, nome completo de mãe e pai. Meu. Para sempre.

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Quem é que conta o tempo, ou o Tempo? Os dias? Os meses. Os anos… “Um dia atrás do outro atrás do um”, disseram-me. Disseste-me.

Um dia atrás do outro atrás do um são já tantos dias. E a minha memória, minha maior inimiga, que revive cada dia, atrás do outro atrás do um.

Às vezes gostava de não ser assim. Mas é assim que sou. É assim que estou.

Vazia.

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O cinzento também é cor. Mas não posso esquecer-me de voltar a focar-me nas outras cores. Mesmo quando, ou especialmente porque, me foge o cor de rosa.