Monthly Archives: February 2017

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Posso não saber, ainda, onde quero chegar. Sei, no entanto, que quero lá chegar. Seja lá onde for. Porque qualquer sítio é melhor que o sítio onde tenho estado nos últimos meses. Anos. 

E por isso continuo o caminho. Mesmo quando vejo progressos, mesmo quando reconheço alguma evolução e quase tenha vontade de dizer “a partir de agora já sigo sozinha”. Continuo o caminho mas reconheço que saber o básico não é o suficiente, ainda, para continuar o caminho sozinha. Sei que voltarei a tropeçar durante o processo, sei que voltarei a recuar, sei que voltarei a desfazer, as vezes que forem precisas, uma parte do que já foi feito. Porque também isso faz parte do processo. De aprendizagem. De crescimento. Mas, acima de tudo, de cura. 

Tenho medo. Muito. De reconhecer, de aceitar, de dizer, de verbalizar que estou melhor. Tenho medo, muito. Claro que tenho. Porque, sei, voltarei a tropeçar, voltarei a cair, voltarei a chorar… 

Mas por hoje, só por hoje, reconheço, aceito, digo, verbalizo: estou melhor. 

Mas ainda: um dia atrás do outro atrás do um. O caminho ainda agora começou. 

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Ir percebendo, aos poucos, que se é capaz. Aprender e dominar o básico, os primeiros passos para prosseguir o caminho com um bocadinho mais de confiança. Certezas nunca. Mas confiança. Em mim própria. 

Se, como com a agulha e a linha, tantas vezes pensei em desistir, também tantas outras acredito que vai resultar. Que vou conseguir. 

Um dia atrás do outro atrás do um. 

Um ponto de cada vez. E voltar atrás tantas vezes quantas forem necessárias para poder, no final, dizer: consegui. 

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“- Disse-te que não queria que nada mudasse. Que tinha medo que tudo mudasse. E tudo mudou. 

– Mas nada mudou! 

– Não…? 

– Não! O Sol continua a nascer todos os dias, não continua? 

-……………” 
Sim. O Sol continua a nascer todos os dias. Mas não é isso que impede que, por vezes, simplesmente não brilhe. 

Tudo mudou. E eu disse-te que não queria. Pedi-te que não mudasse. Mas tudo mudou. 

Até o nascer do Sol perdeu o brilho. 

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Um dia.

Um dia vou perceber onde é que errei, onde é que virei na curva errada, onde é que segui mal as indicações.

Um dia vou perceber. Vou perceber porque é que não posso ser simplesmente eu, como sou, quem sou, o que sou.

Um dia vou perceber porque é que não encaixo, não pertenço, não sou de. Não sou daqui, não sou dali, não sou de lado nenhum.

Um dia vou perceber porque estranho a imagem reflectida no espelho, que não reconheço, nunca reconheci. Que não me pertence. Que não sou eu.

Um dia vou perceber porque é que pouco ou nada disto faz sentido, quando eu sou mais de sentir do que fazer sentido.

Um dia vou perceber esta sensação permanente (perpétua?) de abandono, de desprotecção, de falta de lugar, de falta de pertença.

Um dia vou perceber.

Até lá continuo a tentar encaixar-me, a tentar pertencer, a tentar acertar, a tentar seguir as indicações certas.

Até lá continuo a tentar não ser eu, porque continuamente me recordam que não o posso ser. Que não posso ser como, quem, o que sou.

Até lá vou convivendo da forma mais pacífica possível com a imagem reflectida no espelho, mesmo que continue a saber que não sou eu. Que não me pertence. Que não reconheço.

Até lá continuo a tentar que tudo faça sentido, que nada faça sentir.

Porque sentir dá trabalho. Porque sentir assusta. Porque sentir é demasiado natural e espontâneo num dia a dia altamente artificial, programado, agendado, com horas marcadas até para simplesmente ser. Ser o quê…? Não sei. Se simplesmente não me deixam ser…

Um dia vou perceber o que raio faço aqui afinal. Para que serve tudo isto. O bom e, especialmente, o mau. Um dia vou perceber todo o sentido de tudo isto.

Até lá vou simplesmente sentindo. Mesmo que me recordem que não posso ser assim: alguém, que não sei quem, que simplesmente sente. O bom e, especialmente, o mau.

Um dia.

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O toque. 

O cheiro. 

O som. 

O calor. 

Tudo isto marca a presença. 

A falta de tudo isto recorda a ausência. 

Desde sempre. E desde sempre que a maior presença é, precisamente, a ausência. 

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“Lembras-te do que falámos sobre a expressão ‘sozinha’? Gostava que reformulasses a frase.”

Não. Nem sempre é possível substituir “sozinha” por “sem o apoio de”. 

Porque é, de facto, sozinha que ao fim do dia tudo piora. E é sozinha que vou seguindo este caminho. Esta luta. Este luto. Porque, sei-o, é só meu.

Sozinha. 

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Cansada dos dias a preto e branco.

Mas não consigo reter a cor.

Não, o meu sorriso não está cá sempre. Pelo menos não aquele de há 20 anos. Nem de há 10. Ou apenas 3. O de agora, quando aparece, é tão diferente. É cinzento. Pesado. Dorido. Cansado.

Como eu. Cansada. Dorida. Pesada. Cinzenta.

Não consigo reter a cor. Perdi o cor de rosa. Não consigo plantar verde -> violeta -> rosa.

Estou cansada dos dias a preto e branco. Estou cansada disto. Um isto que não é possível de explicar. E é quase impossível de continuar a sentir. Porque não é dor. É algo para além disso cujo nome desconheço. É vazio e mais além. É negro, cinza escuro. É sombra. É frio de queimar por dentro. É estar e não estar. Aqui e ausente, distante. Porque não saio de lá, mais atrás. Sou eu e outra que nunca tinha sido. Não sou eu e outra que não quero ser. É não ter rumo e ter uma bússola. É ver o farol, luz de presença e desviar-me do caminho.

É tudo e não é nada. É sentir. Demasiado, como sempre foi. Tudo ao mesmo tempo. É a capacidade de armazenamento da memória. É a ausência do que nunca esteve realmente. É ser sozinha sem o estar. É estar sozinha sem o ser.

São os dias a preto e branco. Sou eu a não reter a cor.

Sou eu. E a outra que não eu.

Cansada.

Exausta.

Pesada.

Dorida.

Sozinha.

Vazia.

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Dizia-me ele ontem, depois do abraço que já faz parte do ritual semanal: “uma vantagem do abraço é que são sempre precisos dois para acontecer. Outra é que não é possível dares um abraço sem receber outro. E a mim também sabe e faz muito bem”.

Abracem mais. Pode ser o suficiente para fazer a diferença num qualquer dia menos bom. E melhora ainda mais um dia menos mau.

O que me falta…? Neste momento, um abraço. Pouco ou nada mais que isso… Ou, simplesmente, o toque……

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Trabalho para casa.

Plantar.

Verde. Violeta. Rosa.

Para colher o resultado do verde, do violeta, do rosa.

You’re going to reap just what you sow. 

Escolho plantar cor. Escolho colher cor.

Verde. Violeta. Rosa.

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Aos poucos, a cor. Mesmo que o dia teime em querer permanecer cinzento. 

Aos poucos, a cor. Mesmo que chova lá fora e cá dentro. 

Aos poucos, a cor. 

Um dia a chuva pára. E o cinzento desvanece. 

Aos poucos. 

A cor. 

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Crueldade é alguém que acabas de conhecer te dizer “Ainda bem que o seu bebé não nasceu. Isso era egoísmo. Como é que ia cuidar dele agora com essas dificuldades? Como é que ele ia estar agora? Ia estar a passar fome, como é que você fazia? Matava-o, era?! Era?! Isso era ser muito egoísta! Problemas tem a minha amiga que tem cancro!”

De todas as barbaridades que tenho ouvido ao longo dos últimos 2 anos e meio esta supera tudo. É cruel. É maldoso. É desumano. É surreal. É inominável. É impossível de ter sido dito. Mas foi. Por uma mulher. 

Fica aqui para memória futura. Fica aqui para me recordar porque é que hoje baixei os braços mais um pouco. Porque é que desisti mais um pouco. 

Porque se já não me sentia com força suficiente para continuar, depois de hoje a força que precisava está completamente esgotada. Não existe. 

Isto não se diz. A ninguém. 

Mas isto foi dito. Hoje. A mim. 

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Como se sobrevive no fundo do poço, onde falta o ar, falta a luz, falta a cor? 

Já lá estive antes. Não me recordo como saí… Ou recordo-me. Até bem demais. Três dias em silêncio até que um murro na mesa me trouxe de volta. 

Não vai haver murro na mesa desta vez. Não há murro na mesa há muito tempo, desde o dia “já não posso fazer nada por ti”. Porque um cobarde é um cobarde é um cobarde. 

Há, sim, várias luzes de presença. Que me chamam, que tentam puxar por mim. Mas eu não sei, já, como voltar para cima. Como corresponder ao chamamento dessas luzes de presença. Onde está a energia, a força, para me trazer de volta à superfície. 

Dizem que faz parte. Dizem que sou forte. Dizem que vou conseguir. Digo que até lá, um dia atrás do outro atrás do um, o esforço para sobreviver é demasiado grande, demasiado doloroso, demasiado violento. 

Onde vou para encontrar essa tal de força que me dizem que tenho? Onde vou para respirar quando o ar não entra e a voz não sai? Onde vou para regressar à superfície? 

Afogo-me todos os dias um pouco mais. Apago-me todos os dias um pouco mais. 

Como se sobrevive no fundo do poço, onde falta o ar, falta a luz, falta a cor? No fundo do poço onde estou eu, onde falto eu.