Quieta e sossegada no meu canto a marcar linhas paralelas. E, mais uma vez, a recordar que linhas paralelas nunca se cruzam, apesar da ilusão no ponto de fuga.
O ponto de fuga já não existe. As linhas? Serão sempre paralelas.
Quando a ansiedade te faz encostar o carro. Porque te prende os movimentos. Porque te leva por caminhos que não queres. Porque preferes dar tempo e ter o teu Tempo para regressar à confiança de que tudo vai correr bem.
A Terra não roda, não gira. És tu que te moves nela, sobre ela. Com passos mais ou menos seguros, no caminho que é o teu, seja a tua escolha ou não. Segues o teu caminho o melhor que podes, o melhor que sabes, mesmo sabendo que podias sempre ter feito mais, podias sempre ter feito melhor. Podias sempre ter feito diferente.
A Terra não roda, não gira. És tu que te moves nela, sobre ela. E por isso é normal voltares aos lugares de sempre ou até encontrares os lugares que não queres. Aqueles que evitaste enfrentar no tempo certo e onde te cruzas agora. Agora neste tempo diferente, neste caminho diferente, acertas o passo na direcção que tem ser, seja ela a direcção certa ou outra qualquer.
A Terra não roda, não gira. E, a menos que te mexas, ficarás sempre no mesmo lugar. E por isso decides mexer-te. Respiras fundo e voltas a arrancar com o carro, com calma e um pouco mais de confiança porque, afinal, a Terra roda e gira e a cada volta crias um novo caminho dentro do teu caminho.
Tudo tem os seus ciclos. Até as árvores.
Não posso esquecer-me de ser árvore. Raízes vincadas no solo, ramos rumo ao alto qual cabeça erguida depois de tanto tempo de olhos postos no chão.
Não posso esquecer-me de ser árvore. Mesmo que os meus ramos estejam de novo despidos.
Tudo tem os seus ciclos. Até as árvores. E até as árvores se voltam a vestir num novo ciclo que chega após chuvas e ventos e tempestades.
Não posso esquecer-me de ser árvore e enfrentar as tempestades com a certeza que, mais tarde, mais forte, os meus ramos serão maiores e voltarão a ter cor.
Tudo tem os seus ciclos. E eu, árvore ou não, também.
descarrilar | v. tr. | v. intr.
des·car·ri·lar – Conjugar
verbo transitivo
1. Desviar do carril; fazer sair dos carris.
verbo intransitivo
2. Saltar fora dos carris sobre que ia rodando (carruagem).
3. [Figurado] Sair do bom caminho, da senda do dever; disparatar.
“Descarrilar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/Descarrilar [consultado em 25-04-2016].
Acumulam-se as curvas e contracurvas no caminho com o estado da via a necessitar de atenção. Segue-se caminho um dia atrás do outro atrás do um, com paragem em todas as estações e apeadeiros excepto Chelas e Marvila, a um ritmo mais ou menos constante de dias bons e dias assim-assim. Longe os dias maus. Passe mensal, passe diário para contabilizar cada um dos dias que chegam, que passam.
Mas o estado da via a necessitar de atenção. Não que existam obstáculos intransponíveis, apenas pedras pelo caminho que se vão soltando da engrenagem. Sim. As pedras não estão no caminho. Estão na engrenagem, escondidas algumas delas de modo a permitir o fluir do percurso. Mas o estado da via a necessitar de atenção.
São pedras. Pequenas pedras, que se escondem aqui e ali, que de vez em quando se soltam e caem na via, naquela via a necessitar de atenção. Pedras que vão caindo sem fazer estrago, aliviando a carga, a sobrecarga de pedras que se escondem. Algumas dessas pedras fazem parte da estrutura que cobre a engrenagem. Foram sendo recolhidas à passagem por aqui e por ali. Construindo toda uma estrutura que cobre o que faz mexer, o que faz seguir em frente. No fundo, o que faz seguir em frente é essa engrenagem que precisa de manutenção mas também da protecção dessa cobertura de pedras.
As outras pedras foram também recolhidas por aqui e por ali. Muitas delas com o seu propósito no momento certo em que foram recolhidas, outras cuja função ainda não é bem clara apesar de fazerem parte de todo o percurso, outras apenas um peso que é preciso largar. E é preciso largá-las do modo certo para não danificar ainda mais a via, já de si a necessitar de atenção. É preciso largá-las do modo certo, já fora de tempo, para não danificar ainda mais a estrutura que as transporta, em sobrecarga, há já demasiado tempo.
São essas pedras, em sobrecarga e já mal arrumadas, que põem em risco a engrenagem. O pó dessas pedras já se faz sentir, já se lhes ouve o atrito. E mesmo assim se segue a viagem num percurso certo que efectua paragem em todas estações e apeadeiros excepto Chelas e Marvila, um percurso de um dia atrás do outro atrás do um. Com excesso de carga. Com sobrecarga de pedras mal arrumadas a espalhar pó pelo caminho, por essa via a necessitar de atenção.
É necessária uma paragem em breve. Seja em que estação ou apeadeiro for, mesmo até Chelas ou Marvila. É necessária uma paragem em breve para aliviar a sobrecarga no sítio certo, já fora de tempo. É necessária uma paragem em breve para arrumar essas pedras em depósito próprio. Voltar a limpar a via. Voltar a desobstruir o caminho. Voltar a olear a engrenagem. E com passe diário seguir a conta dos dias que chegam e dos dias que passam, já sem pesos nem risco de descarrilamento por excesso de carga mal arrumada.
“Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal
Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual
Na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar
Abre bem os olhos, escuta bem o coração, se é que queres ir para lá morar”
{Jorge Palma . Na Terra dos Sonhos}
Já o Mundo dos Sonhos é tão diferente. No Mundo dos Sonhos o céu pega fogo e as nuvens ardem. Há terroristas armados de metralhadora e cintos de explosivos escondidos no trajecto de todos os dias, pelo meio do mato dos caminhos de infância. Há autocarros com turistas que me têm como guia para um porto seguro, autocarro conduzido por uma colega de feiras que percorre os caminhos de sempre em sentido contrário. E onde nos cruzamos com eles, os homens armados de metralhadora e cintos de explosivos.
O céu pega fogo e as nuvens ardem enquanto mudo de cenário e me vejo com eles, os homens armados de metralhadora e cintos de explosivos, em troca de um caminho seguro para o autocarro com turistas conduzido por uma colega de feira.
O céu não estava em chamas nem as nuvens ardiam antes, quando entrei no Mundo dos Sonhos. Quando passava no aeroporto, chegava às Partidas sem ser o aeroporto o meu destino. Quando me cruzei contigo e passaste por mim como se não me visses tendo-me olhado nos olhos. Seguias em direcção às Chegadas de uma sala de espera de hospital.
O céu não estava em chamas nem as nuvens ardiam quando nos cruzámos naquelas rampas de um Mundo estranho e tu me olhaste nos olhos, baixaste os teus e seguiste. E obriguei-me a acordar do sonho no sonho, sabendo que viajava no Mundo dos Sonhos querendo falar-te no Mundo que não é dos Sonhos. Mas foi ainda no Mundo dos Sonhos que não consegui ligar-te e o Céu pegou fogo e as nuvens arderam.
E foi ainda no Mundo dos Sonhos, com o céu em chamas e as nuvens a arder, que enquanto seguia num autocarro com turistas guiado por uma colega de feira que seguia em sentido contrário por caminhos de sempre cruzando-nos com homens armados de metralhadora e cintos de explosivos escondidos no mato dos caminhos de infância, entregando-me em troca de segurança para outros, foi ainda nesse Mundo dos Sonhos que repeti sem cessar a mesma pergunta que te fiz naquelas rampas de um Mundo estranho e hei-de continuar a repetir no Mundo que não é dos Sonhos: porquê?
No Mundo dos Sonhos o céu arde e as nuvens pegam fogo. A realidade e a fantasia cruzam-se. Encaixam-se. Existe resposta para tudo. Mas nem no Mundo dos Sonhos consigo a resposta que procuro.
Fazes-me falta. Nunca fui apologista daquela coisa de “só faz falta quem cá está”. Porque se está não falta. Porque não estar pesa.
Fazes-me falta. De diversas formas, por diversos motivos, em diversos momentos.
Fazes-me falta. Não há muito mais que possa dizer ou fazer. Fazes-me falta e é só.
Recordo outros tempos, outras vidas?, sinto as diferenças que o Tempo trouxe. Fazes-me falta e a maior diferença nem é essa. Porque, percebo agora, de certa maneira sempre me fizeste falta.
Fazes-me falta. Há tanto Tempo que não dei conta do Tempo passar. Há tanto Tempo que não dei conta da falta que me fazias. Da falta que me fazes.
Da falta que continuarás a fazer-me.
Fazes-me falta.
Um dia escrevo-te uma carta. Provavelmente de despedida. Porque um ponto final é, muitas vezes, uma despedida. Especialmente se essa carta não tiver resposta como tantas outras que te escrevi. Aquelas que tu não leste, aquelas que leste e não as soubeste para ti, aquelas que escolheste responder não respondendo.
Um dia escrevo-te uma carta. Se em papel ou não, não sei. Escrevo-te uma carta como te escrevo hoje. Ou em papel com envelope e estampa dos correios. Uma carta onde te digo adeus, onde te agradeço, onde te digo tudo o que nunca disse.
Um dia escrevo-te uma carta. Daquelas sem filtros. Onde não uso metáforas. Onde não pinto a cor dos dias mesmo que os dias por vezes não tenham cor. Onde me exponho crua, sem pudores nem receios.
Um dia escrevo-te uma carta. Mesmo que seja a última. Mesmo que não a leias. Mesmo que não chegue ao destino extraviada na rede do correio. Mesmo que nunca seja enviada.
Um dia escrevo-te uma carta. Não te direi nada que não saibas já. Não te direi nada de novo. Não te direi nada de nada. Porque essa carta que um dia te irei escrever é daquelas cartas que não sei escrever. De despedida. De adeus. De ponto final.
Manter o foco. Manter o rumo. Assumir uma espécie de invisibilidade.
O Mundo é um lugar cada vez mais feio. Muito feio. E que entendo cada vez menos. Também por isso me vou deixando ficar no meu canto. Por não entender este Mundo. Por não entender as pessoas.
Mantenho o foco. Mantenho o rumo. Assumo uma espécie de invisibilidade.
Acredito que há mais cor de rosa no meu caminho. Algures por aí.
Mimos na caixa de correio. Lisboa em versão diorama para recortar, colar e montar. Cape Town e Table Mountain, África do Sul num selo de leão.
São mimos. São gestos que me sabem bem. Que me fazem sorrir ao abrir aquela caixa cinzenta ao final do dia. São pequeninas coisas que me são enormes.
Já tinha saudades de mimos na caixa de correio.