Já não falta muito para fazer 20 anos que lido com este bicho. Ou, pensando bem, até já fez. Aliás, já fez mais, uns bons 22 ou assim. Olhando assim à distância, aquele passeio a cavalo que começou num terreno apropriado e iria passar pela praia a meio da tarde, uma tarde quente de Verão em plena adolescência, vejo-o hoje como a minha primeira crise de ansiedade. A falta de ar. Sobretudo a falta de ar. E o medo. O medo de voltar a cair do cavalo, como poucos anos antes aconteceu e em que os cascos roçaram a minha cara bem de perto. Perto demais, diria. Não me esqueço desse tombo, que podia ter feito estragos e apenas deixou uns arranhões. E o medo que veio nesse passeio de Verão.
Lembro-me de dizer a meio “não posso continuar, estou com falta de ar, estou com asma”.
Ao contrário da asma, em que o ar não sai, na ansiedade o ar não entra. Ou às vezes entra, a uma velocidade absurda e que mesmo entrando não deixa respirar. Sim, entra e sai tão depressa que nem respiramos. E deixa-nos assim com aquela sensação de pulmões leves, demasiado leves que mais parece que, por momentos, horas, dias, deixam de existir. Mas estão lá, a tentar cumprir a sua função, num ritmo desordenado e absurdo. Como hoje. Como hoje todo o santo dia. E ontem. E de há uns dias para cá.
O ar entra. Sim. E sai. Mas para sair tantas vezes tem que ser com força para que saia todo. E para entrar também. Inspirar com força, mas nunca conseguindo preencher a capacidade dos pulmões que, lá está, cumprem as funções para as quais foram desenhados, mas a um ritmo que não é o certo, que não traz conforto, não traz alívio.
Fosse apenas esse o problema da ansiedade e seria relativamente fácil de lidar com ele. Bastaria tentar controlar o ritmo, a intensidade, a quantidade de ar. Bastaria? Não sei. Se calhar não. Sim, ao fim de tantos e tantos anos deste bicho que corrói ainda não sei se bastaria controlar a entrada de ar. Como quando enchemos os pneus do carro. 2.0 pedem os meus. Os do carro. E quando o aparelho apita já sei que a pressão está certa, o ar entrou todo e a quantidade é a certa para circular em segurança. Mas no manual de utilizador dos pulmões não consta a pressão, a quantidade nem a velocidade a que o ar deve entrar. Não nestas situações de ansiedade. Fazem parte daquelas questões de desgaste que os carros têm. Tudo certinho, mas ao fim de uns anos começam as desafinações e situações que não surgem nos manuais.
A psicoterapia comportamental aos 19 anos não me ajudou em muito. Com um grupo de pessoas que, como eu, sofriam de ansiedade com perturbação de pânico, algumas com graves distúrbios de agorafobia. Como estarão eles agora, passados 18 anos? Tenho alguma curiosidade se aquela senhora que era em tempos jornalista mas que não saía de casa há 20 anos já consegue, 18 anos depois, levar uma vida normal. Ou aquele senhor que se sentia mal sempre que conduzia em autoestrada. Ou o outro que entrava em pânico em elevadores e na Ponte 25 de Abril. E que, contou-nos, naqueles tempos em que não havia separador central fez inversão de marcha a meio da ponte e voltou para Lisboa. Nunca mais tinha conseguido passar a 25 de Abril. Será que hoje já consegue? E será que já consegue andar em elevadores daqueles com portas de grades?
Éramos tantos no grupo, mas curiosamente só me lembro destes três casos. Talvez porque, apesar da enorme diferença de idades, sendo eu a mais nova de todos, bem mais nova, talvez porque me identifiquei durante tanto tempo com estes cenários. Menos com os elevadores. Acho eu. Apesar de ter tido uma crise de pânico no elevador da Casa da Guia quando encravou com a lotação no máximo, um calor insuportável, e nós ali, a meio, numa altura em que mal se tinha acesso à janela panorâmica e o que se via nada mais era do que um bocadinho de mar e imensidão.
Superei já, e com orgulho, a passagem da ponte. Já o faço sozinha há 5 anos. Já o faço sozinha à noite há menos tempo. Mas já o faço sozinha em ambos os sentidos, seja a que horas for. 3 da manhã incluído.
Já superei também o sair de casa. Durante demasiado tempo não consegui. Fechei-me ali, perdi-me ali. Sim, foi mesmo ali que me perdi de mim e do mundo, por causa deste bicho que corrói e faz doer. Porque estava bem em casa e bastava pôr o pé na rua e ia morrer logo ali, à porta.
Ainda não superei as autoestradas. A única que me gabo de já conseguir fazer sozinha, que já fiz de uma ponta à outra, ida e volta, é a A5. É pequena, já me têm dito. É verdade. Mas é uma vitória incomensurável para alguém que demorou alguns anos desde que tirou a carta até conseguir conduzir sozinha. Falta-me a A1 e a A8. A8 essa que mesmo assim só faço até à saída para a Venda do Pinheiro a caminho de Mafra. Porque, daí para cima, nem acompanhada. Lembro-me da viagem de ida e volta ao Cadaval não ter sido nada, mesmo nada, pacífica.
A1 e A8. Falta-me superar estes dois obstáculos…embora já tenha levado o carro até Aveiras. Mas não sozinha, claro. Mentira, Aveiras não. Cartaxo! Mais uma vitória de poucos kms, mas uma vitória. E também de Leiria a Coimbra. Mas em nenhuma das situações fui capaz de trazer o carro de volta.
Porque estas pequeninas coisas, que parecem tão pequeninas a quem está de fora, são vitória imensas para quem vive com este bicho. Que para além de corroer, morder, moer, fazer doer, tenta com força destruir tudo. Porque nos prende os movimentos. Porque nos tolda as capacidades. E porque nos faz sentir incapazes.
Consigo reconhecer algumas situações que me levam da ansiedade à crise de pânico como aqueles carros que vão dos 0 aos 100 em 10 segundos. Consigo reconhecer que qualquer que seja a situação em que me estejam a avaliar, é garantida a ansiedade em alta a transbordar para o ataque de pânico. Como quando tirei a carta de condução. Já lá vão 11 anos e meio desde o exame, mas lembro-me tão bem de sair da Madre Deus em direcção aos Olivais e não conseguir ver. A visão absolutamente turva. As pernas a tremer. As mãos a tremer. A respiração a mil. E a jurar a mim mesma que ia morrer ali. E que por isso ia chumbar. Mas aguentei-me, fui teimosa, fiz o exame e passei. Mas sim, deixei de ver, como tantas vezes deixei de ver quando passava a Ponte 25 de Abril. Valeu-me, sempre, a minha mãe, a minha co-piloto de sempre, que me detectava os sinais de alarme tantas vezes antes de eu mesma me aperceber e que quando já era tarde simplesmente me dizia “respira, vais bem e estamos quase a sair”.
Ainda hoje a minha mãe me diz “respira”. Tantas vezes. E já não o faz enquanto conduzo o carro, mas enquanto conduzo os meus dias. E os últimos dias, e os próximos dias, todos esses dias têm sido e vão ser de condução turva. Porque o ar não entra. Ou entra tão depressa que nem dou por ele. E ela diz-me “respira” e eu respiro o melhor que consigo. O melhor que sei nestas situações. Embora, ao fim de tantos e tantos anos de prática, já devesse saber respirar melhor.
Mas a ansiedade, que já conheço tão bem e sobre a qual tenho um mestrado, uma pós graduação, um MBA, o que quiserem, tudo isto por equivalência obviamente, a ansiedade ainda me surpreende. Ainda me apanha desprevenida. Tal como tem feito nos últimos dias, num crescendo que me faz ter vontade de chorar, mesmo não o conseguindo fazer (e iria fazer-me tão bem). E a minha mãe, em vez de “respira” já me diz “chora”. Mas não sai…continua a não sair.
Porque desta vez não vou ser avaliada em nada, mas aproximam-se datas de relevo, de importância, de reviver memórias recentes, de conhecer mais pormenorizadamente aquilo que ninguém devia ter que conhecer. 19 de Junho. Está aí tão perto, e ao mesmo tempo ainda tão longe. 19 de Junho, Tribunal de Sintra. A primeira audiência que nos vai fazer, a todos, reviver aquele dia 9 de Novembro. Aquela madrugada. E, apesar de ter já dito tantas vezes a mim própria que sim, que estou preparada, na verdade não estou. Nada. Como posso estar? Quem se prepara para isto? Como se prepara alguém para uma coisa destas? Como se prepara alguém para lidar com o roubo de uma vida? Como se prepara alguém para lidar com aquilo que eu ainda não aceitei porque continuo a acreditar que um dia, um dia destes, qualquer dia, o portão se vai abrir e vai aparecer do outro lado o sorriso de orelha a orelha, o sorriso de miúdo do meu primo.
Não vai nada, eu sei. Mas não aceito. E porque não aceito, estou zangada, tanto. Mas com a pessoa errada. E também isso está a contribuir para que o ar não entre. Ou não saia. Ou não esteja na pressão certa. Ou simplesmente não me faça circular em segurança. Porque estou zangada com quem não vai voltar a cruzar o portão, com sorriso de orelha a orelha, sorriso de miúdo e não com quem o roubou de nós. Sim, Alexandre, é contigo que estou zangada. Porque não vais voltar. Não vais voltar a bater-me quando te falar no Sumol Laranja. E, acredita, sempre que digo “Alex, Sumol Laranja”, dói-me a perna como naquela noite de Natal em que quase nos pegámos porque me deste um murro como nunca levei, nem antes nem depois. Nem o murro no estômago que senti quando a tua mãe me ligou a dizer que já não te tínhamos, nem esse murro foi tão forte como o que ainda sinto cada vez que brindo a ti. Estou zangada, Alexandre, porque não tinhas o direito a ir-te embora assim, dessa maneira estúpida, absurda, sem sentido, sem propósito. E deixar-nos aqui, assim, na merda, na ansiedade, no vazio. E não vais voltar a cruzar o portão, Alexandre. E só por isso me apetece esmurrar-te da mesma forma que me esmurraste a mim. E isso, Alexandre, faz-me não conseguir respirar como devia. Porque sei que não te foste embora porque quiseste. Porque sei que eras demasiado novo para te ires embora. E sei também que, apesar de ter visto o teu sorriso de orelha a orelha naquele caixão, sim, porque estavas a sorrir, como é que é possível alguém ter sofrido o que tu sofreste e despedir-se assim de nós, com um sorriso de orelha a orelha, Alexandre?! E sei que quando te vi, porque fiz questão de te ver, eu que nunca vejo os meus mortos, que sempre me recuso a sequer estar na mesma sala que eles, fiz questão de te ir ver, de olhar para ti. E vi o teu sorriso, Alexandre. Mas quem eu vi ali não eras tu. E continuo a guardar essa imagem na minha cabeça e continuo a dizer, como disse naquele momento a quem me quis ouvir, e acredito que toda a gente ouviu, como não ouvir? Disse e repito que aquele não é o meu primo. Mas era o teu sorriso, Alexandre. O único traço que te reconheci foi o sorriso. Porque, para mim, para a minha mãe, estavas estranhamente irreconhecível. Demasiado magro. Talvez por estares vazio. Vazio de ti, vazio do sangue em que te esvaíste. Talvez porque já não eras tu que ali estava deitado naquele caixão. Mas era o teu sorriso que ali estava. O mesmo que nunca mais irá cruzar o portão.
E isso tudo deixa-me tão zangada contigo, Alexandre. Tão mas tão zangada. Contigo. SÓ contigo! Quando sei que a pessoa com quem devia estar zangada não és tu. Mas é contigo que estou zangada. E magoada. Porque não vais voltar.
E falta-me o ar. Ou entra-me o ar a rodos. Já nem sei. Sei que tudo isto me lembra que dia 19 está quase aí. Mas ao mesmo tempo ainda está tão longe. E a antecipação de ver quem te fez isso, de olhá-lo nos olhos, de o ouvir contar que a única intenção era marcar-te e não matar-te, mas que ainda assim o fez quando teve várias hipóteses de recuar, fê-lo friamente. A antecipação de ouvir os testemunhos do grupinho de heróis da escumalha que esteve presente e que continua a achar que não te fez nada, que não nos fez nada. A antecipação de tudo isso, de ver o teu pai a definhar mais um pouco, a tua mãe a morrer mais um pouco, a tua irmã a consumir-se em raiva e ódio. A antecipação de tudo isso deixa-me assim, sem ar. E sem conseguir dormir. E sem conseguir concentrar-me. E sem conseguir trabalhar. Queria adormecer hoje e acordar daqui a 2 semanas. E não ter que lidar com esta antecipação. Com esta falta de ar. Ou ar a mais. Ou lá o que é isto deste bicho que corrói e se apodera de mim por antecipação.
Não me peçam para ter calma. Quando se tem distúrbios de ansiedade, calma é a última coisa que se consegue ter. Passem mais 20 anos, ou 22. E acho que a antecipação vai continuar a moer-me mais e mais. Mas prometo que não volta a prender-me, a amarrar-me, a perder-me de mim e do resto do Mundo.
Um dia, Alexandre, um dia vou conseguir fazer as pazes contigo. Primeiro tenho que fazer as pazes comigo. Porque não se consegue fazer as pazes com os outros sem as fazermos connosco primeiro. E nesse dia vou respirar fundo, sem pressas, e aceitar que não voltas. E depois, então, quem sabe, zango-me com quem de facto já me devia ter zangado. E não contigo. Espero que me entendas e aceites que possa estar zangada porque não vais voltar. E que, quem sabe, me perdoes por isso.