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{3652 dias depois}

Foi há 10 anos que acordei com aquele telefonema com aquela notícia que ninguém quer. Com aquela notícia que, nos primeiros minutos, não percebi porque desconhecia toda a realidade. Só ao segundo telefonema, esse feito por mim, percebi que não, não tínhamos perdido alguém. Foi no segundo telefonema que percebi que nos tinham roubado alguém.

Ainda me lembro do gelo que senti a percorrer-me o corpo de cima a baixo quando me disseram “foi uma facada”…

Há 10 anos, a esta hora, já estava onde tinha que estar: em Mafra, junto dos meus tios, e a viver o episódio mais surreal da minha vida. E a precisar de colo. Ou simplesmente de um abraço.

Lembro-me de pedir que alguém fosse ter comigo. De Lisboa a Mafra não é longe. Ninguém foi…

Foi há 10 anos. Dez. 3652 dias. Foi como se tivesse sido ontem. O nosso Mundo ruiu. Virou-se do avesso. Aprendemos que, às vezes, os outros somos nós. Mas estamos todos cá para contar a história. Todos? Não. Falta, continua a faltar, vai faltar sempre e para sempre o Alexandre.

Que merda.

10 anos. Dez. Como se fosse hoje…

Nove. Nove anos.

9 anos desde aquela manhã em que aprendi que, às vezes, os outros somos nós.

Não, não acontece só aos outros. Um dia percebemos que, de facto, às vezes não há depois, não há dia seguinte.

Sabes, Alexandre, o tempo passa, mas a ausência fica. Como assim, nove anos já desde que te roubaram de nós?

Nove anos e nunca mais nenhum de nós foi o mesmo. Crescemos à força da brutalidade, transformámo-nos, mas nenhum voltou a ser quem era.

Por vezes esqueço-me daquela coisa de não ter tempo para perder Tempo. Mas a verdade é que nenhum de nós tem tempo para perder Tempo. Porque, um dia, do nada esse tempo acaba. O único tempo que não acaba é o tempo da ausência. Porque essa fica para sempre.

9 anos, Alexandre. E foi como se fosse ontem. Não me esqueço, nenhum de nós se esquece. Mas nem por isso deixas de fazer falta.

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Foi há 5 anos que deixou de acontecer só aos outros. Os outros passámos a ser nós…

Tanta coisa que aconteceu e no entanto está tudo na mesma. Na mesma não. É impossível estar na mesma. Mas parece que foi ontem, mesmo à distância de há 5 anos.

Como assim, 5 anos?

Ainda dói relembrar tudo. Mas também dói o que ficou depois de tudo.

E eu achava que este dia há 5 anos me tinha ensinado que não há tempo para perder Tempo. E ensinou, de facto. Mas tenho-me esquecido disso ultimamente e tenho deixado andar. Não posso. Porque 5 anos passam como se fossem 5 dias e eu ando aqui a queimar o que não tenho: Tempo.

5 anos. Ficou um vazio. De quem já não está e, também, de quem já não é quem era.

Não, não posso esquecer o que aprendi à força. À força do mal, da falta de Amor. É tudo Tempo. Contado ao segundo. E eu sinto que o meu se está a esgotar e eu sem o agarrar.

Não posso deixar esgotar o tempo que tenho. Que é pouco, para não dizer que é nenhum. Porque, lembro-me bem, o amanhã não está garantido.

5 anos. Foi há 5 minutos. Tanto tempo, Tempo nenhum.

E tanto que aconteceu nestes 5 anos e tanto que está na mesma no que se perdeu.

Chega. Não vou perder mais Tempo.

{como assim, 3 anos amanhã?} 

Há 3 anos, a esta hora, o Mundo ainda não era um lugar tão feio e tão estranho. Pois não, Alexandre?

Apesar de tudo, sobrevivemos todos a esse novo Mundo feio e estranho, alguns até nos multiplicámos.

Mas continuas a faltar tu, Alexandre. E há 3 anos, a esta hora, ainda sorrias como só tu sabias.

Não é possível voltarmos a este dia há 3 anos e fechar-te em casa para que não fosses trabalhar, para que não fosses abrir o bar. Para que não perdessemos esse sorriso durante a madrugada.

Continuas a faltar tu, Alexandre. Mas o teu sorriso ficou.

Como assim, 3 anos amanhã…?

APAV 8 meses depois {parte 3, a última}

Dos dias que contam: hoje, nota de alta. Hoje, última visita ao sítio onde não quero voltar. Mas onde precisei chegar.
Para reaprender a respirar sozinha. Para aprender a aceitar. Para aprender a compreender mesmo o que não tem explicação.

Foram 8 meses. De um apoio que precisei muito. E que, digo sempre, ainda bem que existe. Embora a sua existência se deva apenas e só a tudo o que de mau existe.

A APAV não apoia apenas casos de violência doméstica. Apoia qualquer tipo de vítima e de igual forma. E, aprendi, o que leva à existência da APAV não acontece só aos outros. Até porque os outros podemos ser nós um dia.

Não me identifico como vítima. Embora me digam que sim, não o sou. Sou, sim, familiar de vítima de crime violento. E também nestes casos a APAV está lá. E se sempre pensei que nunca iria precisar de recorrer aos seus serviços, porque como toda a gente sempre pensei que “isso só acontece aos outros”, descobri à força que os outros também somos nós. De um dia para o outro, quando menos se espera, passamos para o outro lado, para o lado “dos outros”. Onde nunca quisemos estar. Onde nunca pensámos que algum dia estaríamos.

Nunca tive problemas em pedir ajuda. Seja em que campo for. Porque ninguém caminha sozinho, porque ninguém sabe tudo, porque ninguém tem sempre resposta. Sempre que precisei de ajuda, pedi. E não me arrependo, em nada, de ter pedido a ajuda certa à instituição certa.

Sei que algumas pessoas me olharam de lado. Outras houve que me criticaram. Duramente. A umas e outras digo apenas o mesmo: fui onde tive que ir, onde precisei, muito, de ir.

Porque não soube, durante 7 meses, lidar com o que aconteceu. Não soube aceitar. Não soube entender. Não soube encaixar e arrumar. E deixei, também, de saber respirar. Tão simples quanto isso: respirar.

Elogio, muito, o trabalho da APAV e a disponibilidade imediata desde o primeiro telefonema. E que foi o que bastou. E a rapidez e prontidão com que me receberam. Bastou receber um telefonema da técnica responsável para ter o acompanhamento marcado para 24 horas depois. Acompanhamento semanal. Com horário de início, mas sempre sem horário para terminar.
Uma hora? Duas horas? Três horas quando foi preciso. E foram várias as vezes em que foi preciso. E foi ali, devagar, que me deixaram ser, me deixaram estar. Me deixaram falar, me deixaram chorar. Me deixaram estar em silêncio. Perguntar porquê. Perguntar “e agora?”. Perguntar apenas. As respostas foram todas dadas por mim. À medida que fui aprendendo a encaixar. A construir gavetas para arrumar assuntos doridos. E a cada nova sessão a certeza que respirava já um bocadinho melhor. E a cada nova sessão a certeza que já me doía menos abrir essas gavetas e enfrentar o que lá está guardado.

Hoje, 8 meses de APAV depois, 15 meses depois daquele dia de Novembro de 2013, respiro, abro gavetas e enfrento e aceito. Ou “aceito” porque há coisas que simplesmente temos que “aceitar” porque nada mais há a fazer. Mas respiro. Estou em paz. Tranquila. Já não fico à espera que o portão se abra. E já aceito que, quando abre, não chega quem eu gostaria de voltar a ver.

Hoje, recordei o primeiro dia de APAV. O quanto me doeu o primeiro passo para descer aquela rampa. O quanto me doeu tocar àquela campainha. O quanto eu não queria entrar naquele espaço. Porque achava que não pertencia ali, porque “só acontece aos outros”. O ar que não entrava à medida que me aproximava da porta. O peso que carregava dentro de mim por não conseguir chorar há 7 meses.
Entrei. Sentei-me. E chorei. Pela primeira vez, chorei. Falei. Fiquei em silêncio. Voltei a chorar. Voltei a falar. Duas horas e meia depois, ao sair, estava mais leve. O ar entrava. E tinha uma certeza: ali vou aprender a seguir em frente.

Hoje saí com um sorriso. Despedi-me com um “não quero cá voltar” e um “muito obrigada por tudo”. Fechei aquela porta atrás de mim, subi a rampa, segui o meu caminho sem olhar para trás. E segura de que, mesmo não querendo lá voltar, sei que quem precisar tem ali um porto seguro para reaprender a viver, para reaprender a respirar, para recuperar o sorriso.

Muito obrigada a toda a equipa APAV. Aos técnicos, aos voluntários, aos funcionários, todos. O vosso trabalho É muito importante. E é feito de coração. Muito obrigada por estes 8 meses, mesmo que alguns bastante doridos. Muito obrigada por me reensinarem a respirar. Muito obrigada por tudo. E em jeito de agradecimento, será para a APAV que irei consignar o meu IRS daqui para a frente, não apenas este ano.


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365 dias, Alexandre

Parece que foi ontem, ao mesmo tempo parece que já foi há uma vida inteira. Mas ainda só passaram 365 dias. Ou já passaram 365 dias. Ainda não sei bem se é só ou se é já.

Não me lembro do último dia do ciclo de 365 dias que antecedeu este ciclo que termina hoje. Foi, muito provavelmente, uma sexta feira igual às outras, sem novidades, sem acontecimentos, sem nada para relatar. Mas lembro-me, tão bem, da noite. As minhas noites, que nunca são boas, por vezes parecem alertas. E essa noite, lembro-me tão bem, foi estranha. Passada em branco até ser de manhã. Inquieta com alguma coisa que nunca soube explicar, que ainda hoje não sei explicar. E recordo-me de pensar “mas que raio…eu estou bem, porque é que não consigo dormir? Que agitação é esta que tenho cá dentro?”.

Lembro-me de pensar nisto, e naquele sonho que tive umas semanas antes que me recuso a relatar novamente. E lembro-me também de outro pensamento que me assaltou uns dias antes e que não, não quero repetir nem recordar.

Que noite estranha aquela. Senti-a assim. Mas não imaginava que, à hora em que finalmente adormeci, já de dia, já manhã feita, tu já cá não estavas connosco. E tinha começado, poucas horas antes, o maior pesadelo dos teus pais e da tua irmã.

Nunca mais nada foi como era antes, Alexandre. E como poderia sê-lo? Não bastava tu já cá não estares. Tinhas que ter sido roubado de nós da forma atroz que todos sabemos. Porque, sempre o disse e tu sabes, Alexandre, o meu primeiro pensamento quando soube que já não te tínhamos foi que tinhas tido um acidente numa qualquer curva daquela estrada que eu detesto. Seria a única coisa lógica para a tua partida. E seria tão mais fácil de aceitar e encaixar.

Quando, finalmente, soube a razão de já não estares connosco, não entendi. Ainda hoje não entendo. Digo que sim, que já encaixo. Talvez. Mas continuo sem entender.

Sabes, sinto a tua falta. E sinto, também, a falta dos teus pais e da tua irmã que nunca mais foram, e dificilmente voltarão a ser, os mesmos que eram até ao 365º dia do ciclo anterior a este. Nenhum de nós voltará a ser. Mas eles menos ainda. E tenho saudades de todos. De quando os dias eram mais fáceis, independentemente dos problemas normais que se cruzam connosco. De quando via o teu pai rir e sorrir espontaneamente sem aquela tristeza no olhar. De quando a tua mãe era mais fácil de acarinhar, apesar daquela armadura que sempre teve. Hoje, a armadura que veste é muito mais impenetrável e por vezes mesmo intransponível ao ponto de não lhe conseguir chegar lá dentro, onde importa. E a tua irmã, a tua irmã continua sozinha, sem ti, e é outra pessoa que já não conheço, não reconheço.

Mas quero que saibas, Alexandre, que apesar de vos ter perdido a todos, de formas diferentes daquela que te levou de nós, os teus pais e a tua irmã continuam comigo. Ou melhor, eu continuo com eles. E lamento apenas a impotência que sinto, que vivo, por não poder tornar os dias deles mais fáceis. Ou apenas menos difíceis.

Os últimos 365 dias tiveram altos e baixos. E os baixos bastante baixos, como sabes. E eles estiveram sempre lá para mim. E fizeram com que esses meus dias muito maus fossem um pouco mais fáceis. Souberam como fazê-lo. Mas eu, Alexandre, não sei como melhorar os dias deles. E  gostava tanto que me dissesses como…

{sim, já me mentalizei que o portão não se vai abrir para tu entrares. Já consegui encaixar que não voltas. Já consegui fechar um ciclo de tantos ciclos. Já falo de ti em paz. Ou, pelo menos, mais tranquila. Mas não é por isso que me fazes menos falta. Que NOS fazes menos falta.}

365 dias que se encerram hoje.

Um ano amanhã. Já. Ainda. O que for.

Parece que foi ontem. Parece que foi há uma vida.

APAV {parte 2}

{ou post para memória futura. Já escrito no outro lado, onde com o tempo se irá perder. Aqui, sei que o poderei voltar a ler quando precisar.}

Breve resumo da tarde de 6ª feira:

há sítios, instituições, onde nos custa muito entrar. Dar o primeiro passo para lá chegar pode ser doloroso. Por causa do estigma, porque sempre achámos “estas instituições servem só para os outros”. Mas depois há aquele dia em que os outros somos nós. E respiramos fundo, ou tentamos respirar sequer, e temos que dar esse passo. E damos.

E é lá que nos acolhem e dizem que estão lá para nós que passámos a ser os tais outros. E que estão lá para nos ouvir. E ajudar. Sem pressas. Com imenso respeito pelo que nos é doloroso.

E ouvem-nos. E perguntam-nos. E ouvem-nos novamente. E fazem-nos ter a certeza que sim, que temos direito a falar, a rir e até a chorar. E se choramos deixam-nos chorar. E se rimos, deixam-nos rir. E se ficamos em silêncio por nos faltarem as palavras, dão-nos tempo, dão-nos espaço, dão-nos ar.

E em 5 minutos passaram-se, sem pressa, 2 horas e meia e 7 meses e 11 dias.

Sim, é ali que vou melhorar. Sim, é ali que vou ter a ajuda que preciso. Sim, o ali é a APAV. E não, não acontece só aos outros, porque os outros, um dia, somos nós.

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APAV

Há instituições que nos surpreendem pela positiva. Mesmo aquelas para onde ligamos, mesmo tendo toda a vida acreditado que nunca seria necessário porque, lá está, há coisas que só acontecem aos outros.

Liguei na semana passada. Pedi ajuda. Gostei, muito, do atendimento ainda que apenas telefónico. “Vamos ver se pode ser aqui ou se terá que ser em Lisboa, prometo que lhe ligo amanhã”.

Ligaram no dia seguinte, 5ª feira, ao final da tarde. “Olá, Catarina. Tem mesmo que ser em Lisboa, não pode ser aqui. Mas vamos encaminhar o seu caso para lá, fale com a Dra. RC.” E lembrou-se a tempo de não me tratar por Dona, que abomino, e que tanto lhe tinha pedido na véspera.

Não liguei 6ª feira, por ser feriado em Lisboa. Não liguei ontem por ser um dia tão estranhamente em fuso horário diferente que quando me lembrei já passava das 18h. O atendimento encerra às 17h30.

Liguei há pouco. Pedi para falar com a Dra. RC. “A Dra. esta tarde não está.” Expliquei que liguei para o outro lado, que falei com o técnico PF, por causa de uma porcaria que aconteceu em Novembro. Sou imediatamente interrompida “É a Catarina!?” sim…sou eu…”Estávamos à espera do seu telefonema desde ontem…”

…e foi assim, sem precisar de contar muito, como teve que ser na semana passada, sem precisar de pedir permissão à ansiedade para respirar, foi assim que senti que sim, é uma instituição de apoio para onde ninguém quer ter que ligar mas que se ligar vai ser bem recebido. E bem tratado. Acarinhado, até.

Sim, tratarem-me pelo nome logo assim, e novamente sem Dona, e dizerem que sim, que estão à minha espera. Sim, consigo respirar. Apanhou-me de surpresa, respondi, mas consigo respirar.

Há instituições que nos surpreendem pela positiva. Mesmo aquelas que sempre achámos que nunca teríamos que contactar porque as merdas só acontecem aos outros. Mesmo aquelas que, só pelo nome, só pelo objectivo, já nos merecem tanto mas tanto respeito pelo trabalho que fazem. E que nos tratam assim, pelo nome, e nos dizem “estávamos à sua espera”.

I can’t keep calm

Já não falta muito para fazer 20 anos que lido com este bicho. Ou, pensando bem, até já fez. Aliás, já fez mais, uns bons 22 ou assim. Olhando assim à distância, aquele passeio a cavalo que começou num terreno apropriado e iria passar pela praia a meio da tarde, uma tarde quente de Verão em plena adolescência, vejo-o hoje como a minha primeira crise de ansiedade. A falta de ar. Sobretudo a falta de ar. E o medo. O medo de voltar a cair do cavalo, como poucos anos antes aconteceu e em que os cascos roçaram a minha cara bem de perto. Perto demais, diria. Não me esqueço desse tombo, que podia ter feito estragos e apenas deixou uns arranhões. E o medo que veio nesse passeio de Verão.

Lembro-me de dizer a meio “não posso continuar, estou com falta de ar, estou com asma”.

Ao contrário da asma, em que o ar não sai, na ansiedade o ar não entra. Ou às vezes entra, a uma velocidade absurda e que mesmo entrando não deixa respirar. Sim, entra e sai tão depressa que nem respiramos. E deixa-nos assim com aquela sensação de pulmões leves, demasiado leves que mais parece que, por momentos, horas, dias, deixam de existir. Mas estão lá, a tentar cumprir a sua função, num ritmo desordenado e absurdo. Como hoje. Como hoje todo o santo dia. E ontem. E de há uns dias para cá.

O ar entra. Sim. E sai. Mas para sair tantas vezes tem que ser com força para que saia todo. E para entrar também. Inspirar com força, mas nunca conseguindo preencher a capacidade dos pulmões que, lá está, cumprem as funções para as quais foram desenhados, mas a um ritmo que não é o certo, que não traz conforto, não traz alívio.

Fosse apenas esse o problema da ansiedade e seria relativamente fácil de lidar com ele. Bastaria tentar controlar o ritmo, a intensidade, a quantidade de ar. Bastaria? Não sei. Se calhar não. Sim, ao fim de tantos e tantos anos deste bicho que corrói ainda não sei se bastaria controlar a entrada de ar. Como quando enchemos os pneus do carro. 2.0 pedem os meus. Os do carro. E quando o aparelho apita já sei que a pressão está certa, o ar entrou todo e a quantidade é a certa para circular em segurança. Mas no manual de utilizador dos pulmões não consta a pressão, a quantidade nem a velocidade a que o ar deve entrar. Não nestas situações de ansiedade. Fazem parte daquelas questões de desgaste que os carros têm. Tudo certinho, mas ao fim de uns anos começam as desafinações e situações que não surgem nos manuais.

A psicoterapia comportamental aos 19 anos não me ajudou em muito. Com um grupo de pessoas que, como eu, sofriam de ansiedade com perturbação de pânico, algumas com graves distúrbios de agorafobia. Como estarão eles agora, passados 18 anos? Tenho alguma curiosidade se aquela senhora que era em tempos jornalista mas que não saía de casa há 20 anos já consegue, 18 anos depois, levar uma vida normal. Ou aquele senhor que se sentia mal sempre que conduzia em autoestrada. Ou o outro que entrava em pânico em elevadores e na Ponte 25 de Abril. E que, contou-nos, naqueles tempos em que não havia separador central fez inversão de marcha a meio da ponte e voltou para Lisboa. Nunca mais tinha conseguido passar a 25 de Abril. Será que hoje já consegue? E será que já consegue andar em elevadores daqueles com portas de grades?

Éramos tantos no grupo, mas curiosamente só me lembro destes três casos. Talvez porque, apesar da enorme diferença de idades, sendo eu a mais nova de todos, bem mais nova, talvez porque me identifiquei durante tanto tempo com estes cenários. Menos com os elevadores. Acho eu. Apesar de ter tido uma crise de pânico no elevador da Casa da Guia quando encravou com a lotação no máximo, um calor insuportável, e nós ali, a meio, numa altura em que mal se tinha acesso à janela panorâmica e o que se via nada mais era do que um bocadinho de mar e imensidão.

Superei já, e com orgulho, a passagem da ponte. Já o faço sozinha há 5 anos. Já o faço sozinha à noite há menos tempo. Mas já o faço sozinha em ambos os sentidos, seja a que horas for. 3 da manhã incluído.

Já superei também o sair de casa. Durante demasiado tempo não consegui. Fechei-me ali, perdi-me ali. Sim, foi mesmo ali que me perdi de mim e do mundo, por causa deste bicho que corrói e faz doer. Porque estava bem em casa e bastava pôr o pé na rua e ia morrer logo ali, à porta.

Ainda não superei as autoestradas. A única que me gabo de já conseguir fazer sozinha, que já fiz de uma ponta à outra, ida e volta, é a A5. É pequena, já me têm dito. É verdade. Mas é uma vitória incomensurável para alguém que demorou alguns anos desde que tirou a carta até conseguir conduzir sozinha. Falta-me a A1 e a A8. A8 essa que mesmo assim só faço até à saída para a Venda do Pinheiro a caminho de Mafra. Porque, daí para cima, nem acompanhada. Lembro-me da viagem de ida e volta ao Cadaval não ter sido nada, mesmo nada, pacífica.

A1 e A8. Falta-me superar estes dois obstáculos…embora já tenha levado o carro até Aveiras. Mas não sozinha, claro. Mentira, Aveiras não. Cartaxo! Mais uma vitória de poucos kms, mas uma vitória. E também de Leiria a Coimbra. Mas em nenhuma das situações fui capaz de trazer o carro de volta.

Porque estas pequeninas coisas, que parecem tão pequeninas a quem está de fora, são vitória imensas para quem vive com este bicho. Que para além de corroer, morder, moer, fazer doer, tenta com força destruir tudo. Porque nos prende os movimentos. Porque nos tolda as capacidades. E porque nos faz sentir incapazes.

Consigo reconhecer algumas situações que me levam da ansiedade à crise de pânico como aqueles carros que vão dos 0 aos 100 em 10 segundos. Consigo reconhecer que qualquer que seja a situação em que me estejam a avaliar, é garantida a ansiedade em alta a transbordar para o ataque de pânico. Como quando tirei a carta de condução. Já lá vão 11 anos e meio desde o exame, mas lembro-me tão bem de sair da Madre Deus em direcção aos Olivais e não conseguir ver. A visão absolutamente turva. As pernas a tremer. As mãos a tremer. A respiração a mil. E a jurar a mim mesma que ia morrer ali. E que por isso ia chumbar. Mas aguentei-me, fui teimosa, fiz o exame e passei. Mas sim, deixei de ver, como tantas vezes deixei de ver quando passava a Ponte 25 de Abril. Valeu-me, sempre, a minha mãe, a minha co-piloto de sempre, que me detectava os sinais de alarme tantas vezes antes de eu mesma me aperceber e que quando já era tarde simplesmente me dizia “respira, vais bem e estamos quase a sair”.

Ainda hoje a minha mãe me diz “respira”. Tantas vezes. E já não o faz enquanto conduzo o carro, mas enquanto conduzo os meus dias. E os últimos dias, e os próximos dias, todos esses dias têm sido e vão ser de condução turva. Porque o ar não entra. Ou entra tão depressa que nem dou por ele. E ela diz-me “respira” e eu respiro o melhor que consigo. O melhor que sei nestas situações. Embora, ao fim de tantos e tantos anos de prática, já devesse saber respirar melhor.

Mas a ansiedade, que já conheço tão bem e sobre a qual tenho um mestrado, uma pós graduação, um MBA, o que quiserem, tudo isto por equivalência obviamente, a ansiedade ainda me surpreende. Ainda me apanha desprevenida. Tal como tem feito nos últimos dias, num crescendo que me faz ter vontade de chorar, mesmo não o conseguindo fazer (e iria fazer-me tão bem). E a minha mãe, em vez de “respira” já me diz “chora”. Mas não sai…continua a não sair.

Porque desta vez não vou ser avaliada em nada, mas aproximam-se datas de relevo, de importância, de reviver memórias recentes, de conhecer mais pormenorizadamente aquilo que ninguém devia ter que conhecer. 19 de Junho. Está aí tão perto, e ao mesmo tempo ainda tão longe. 19 de Junho, Tribunal de Sintra. A primeira audiência que nos vai fazer, a todos, reviver aquele dia 9 de Novembro. Aquela madrugada. E, apesar de ter já dito tantas vezes a mim própria que sim, que estou preparada, na verdade não estou. Nada. Como posso estar? Quem se prepara para isto? Como se prepara alguém para uma coisa destas? Como se prepara alguém para lidar com o roubo de uma vida? Como se prepara alguém para lidar com aquilo que eu ainda não aceitei porque continuo a acreditar que um dia, um dia destes, qualquer dia, o portão se vai abrir e vai aparecer do outro lado o sorriso de orelha a orelha, o sorriso de miúdo do meu primo.

Não vai nada, eu sei. Mas não aceito. E porque não aceito, estou zangada, tanto. Mas com a pessoa errada. E também isso está a contribuir para que o ar não entre. Ou não saia. Ou não esteja na pressão certa. Ou simplesmente não me faça circular em segurança. Porque estou zangada com quem não vai voltar a cruzar o portão, com sorriso de orelha a orelha, sorriso de miúdo e não com quem o roubou de nós. Sim, Alexandre, é contigo que estou zangada. Porque não vais voltar. Não vais voltar a bater-me quando te falar no Sumol Laranja. E, acredita, sempre que digo “Alex, Sumol Laranja”, dói-me a perna como naquela noite de Natal em que quase nos pegámos porque me deste um murro como nunca levei, nem antes nem depois. Nem o murro no estômago que senti quando a tua mãe me ligou a dizer que já não te tínhamos, nem esse murro foi tão forte como o que ainda sinto cada vez que brindo a ti. Estou zangada, Alexandre, porque não tinhas o direito a ir-te embora assim, dessa maneira estúpida, absurda, sem sentido, sem propósito. E deixar-nos aqui, assim, na merda, na ansiedade, no vazio. E não vais voltar a cruzar o portão, Alexandre. E só por isso me apetece esmurrar-te da mesma forma que me esmurraste a mim. E isso, Alexandre, faz-me não conseguir respirar como devia. Porque sei que não te foste embora porque quiseste. Porque sei que eras demasiado novo para te ires embora. E sei também que, apesar de ter visto o teu sorriso de orelha a orelha naquele caixão, sim, porque estavas a sorrir, como é que é possível alguém ter sofrido o que tu sofreste e despedir-se assim de nós, com um sorriso de orelha a orelha, Alexandre?! E sei que quando te vi, porque fiz questão de te ver, eu que nunca vejo os meus mortos, que sempre me recuso a sequer estar na mesma sala que eles, fiz questão de te ir ver, de olhar para ti. E vi o teu sorriso, Alexandre. Mas quem eu vi ali não eras tu. E continuo a guardar essa imagem na minha cabeça e continuo a dizer, como disse naquele momento a quem me quis ouvir, e acredito que toda a gente ouviu, como não ouvir? Disse e repito que aquele não é o meu primo. Mas era o teu sorriso, Alexandre. O único traço que te reconheci foi o sorriso. Porque, para mim, para a minha mãe, estavas estranhamente irreconhecível. Demasiado magro. Talvez por estares vazio. Vazio de ti, vazio do sangue em que te esvaíste. Talvez porque já não eras tu que ali estava deitado naquele caixão. Mas era o teu sorriso que ali estava. O mesmo que nunca mais irá cruzar o portão.

E isso tudo deixa-me tão zangada contigo, Alexandre. Tão mas tão zangada. Contigo. SÓ contigo! Quando sei que a pessoa com quem devia estar zangada não és tu. Mas é contigo que estou zangada. E magoada. Porque não vais voltar.

E falta-me o ar. Ou entra-me o ar a rodos. Já nem sei. Sei que tudo isto me lembra que dia 19 está quase aí. Mas ao mesmo tempo ainda está tão longe. E a antecipação de ver quem te fez isso, de olhá-lo nos olhos, de o ouvir contar que a única intenção era marcar-te e não matar-te, mas que ainda assim o fez quando teve várias hipóteses de recuar, fê-lo friamente. A antecipação de ouvir os testemunhos do grupinho de heróis da escumalha que esteve presente e que continua a achar que não te fez nada, que não nos fez nada. A antecipação de tudo isso, de ver o teu pai a definhar mais um pouco, a tua mãe a morrer mais um pouco, a tua irmã a consumir-se em raiva e ódio. A antecipação de tudo isso deixa-me assim, sem ar. E sem conseguir dormir. E sem conseguir concentrar-me. E sem conseguir trabalhar. Queria adormecer hoje e acordar daqui a 2 semanas. E não ter que lidar com esta antecipação. Com esta falta de ar. Ou ar a mais. Ou lá o que é isto deste bicho que corrói e se apodera de mim por antecipação.

Não me peçam para ter calma. Quando se tem distúrbios de ansiedade, calma é a última coisa que se consegue ter. Passem mais 20 anos, ou 22. E acho que a antecipação vai continuar a moer-me mais e mais. Mas prometo que não volta a prender-me, a amarrar-me, a perder-me de mim e do resto do Mundo.

Um dia, Alexandre, um dia vou conseguir fazer as pazes contigo. Primeiro tenho que fazer as pazes comigo. Porque não se consegue fazer as pazes com os outros sem as fazermos connosco primeiro. E nesse dia vou respirar fundo, sem pressas, e aceitar que não voltas. E depois, então, quem sabe, zango-me com quem de facto já me devia ter zangado. E não contigo. Espero que me entendas e aceites que possa estar zangada porque não vais voltar. E que, quem sabe, me perdoes por isso.

A ti, Alexandre

A ti não brindo com vinho. A ti, “Alex, Sumol Laranja”. Sempre. Porque o vinho, lá está, não é para estas coisas que fazem doer.

Desculpa se continuo a não conseguir olhar para as tuas fotos. Desculpa se continuo a evitar olhar-te nos olhos quando passo no corredor onde estão as fotos de família, a partir dos 4 anos da Avó Di, onde está o casamento da Avó Dau e do Avô Salvador (que tu não conheceste, mas de quem eu me lembro e guardo com carinho apesar de ter tido pouco tempo a companhia dele). Com fotos do casamento dos teus pais. Da tua irmã. Com as tuas fotos de bebé, que sempre lá estiveram, não são de agora, tuas e da Pi.

Desculpa se não consigo falar directamente com a tua mãe. E se não abraço mais o teu pai. Mas falo com a tua irmã. E falei. E perguntei. E li o teu Processo. Que merda de Processo, devo dizer-te. Que merda que te fizeram, Alexandre! Que merda que nos fizeram contigo.

Tenho saudades tuas, sabes? E sim, continuei a olhar para o portão a tarde toda à tua espera. E tu não chegaste. E enquanto estiver aqui, sempre que oiço a campainha tocar, sempre que baterem ao portão, vou ficar na expectativa. E continuo com saudades tuas. Nunca o disse a ninguém. Mas tenho. Muitas. Talvez, talvez não, de certeza por isso ontem não consegui dormir.

E claro que ao almoço tinha que brindar a ti, em silêncio, para mim. Porque, cá em tua casa, esta vai ser sempre a tua casa, nunca falta o Sumol Laranja. E…Alex, Sumol Laranja. És tu. Sempre.

{6 Meses e 16 Dias}

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Dos dias “assim”

Dos dias que moem. Sem ansiedades, pelo menos não declaradas, talvez com antecipações para o dia de amanhã.
Dos dias que, depois de tantos dias de sorrisos e boa disposição, apenas apetece chorar sem motivo, de impaciência talvez, de incerteza, de dores antecipadas.

Porque amanhã, 6 meses e 16 dias depois, vai ser um dia de dores. Vai ser dia de visitar aquele lugar em Mafra onde há 6 meses e 16 dias se deixou de viver, se passou a sobreviver. Um dia de cada vez. A casa dos meus tios. Onde sei que vou estar, como desde o primeiro dia, a olhar para o portão à espera de ver o meu primo chegar com aquele sorriso de miúdo, de orelha a orelha, e a dizer “foi só uma brincadeira”. E era aí que me levantava e ia ter com ele e lhe batia e chamava estúpido por ser uma brincadeira de tão mau gosto que se arrasta há 6 meses e 16 dias. Mas o portão, sempre que abrir, não vai trazer esse sorriso de miúdo, de orelha a orelha. Vai trazer outros, de certeza, que se vão juntar de surpresa para acompanhar a minha tia no seu primeiro aniversário sem o filho. O outro sorriso, o de orelha a orelha, o de miúdo, o do meu primo, esse, já sabemos, não voltará a passar o portão. E eu não vou poder chamar-lhe estúpido e bater-lhe pela brincadeira de mau gosto. Porque não é brincadeira nenhuma, apesar de ser de extremo e profundo mau gosto.

Assim como é de extremo e profundo mau gosto elevar a herói e aplaudir aquele Palito que assassinou duas mulheres e tentou, ainda que sem sucesso, assassinar outras duas, uma delas a própria filha. Não, não é um herói porque se conseguiu esconder da polícia durante tanto tempo. Menos herói é por ser um assassino. E a quem aplaude este Palito só posso mesmo desejar que nunca passem pela experiência de lhes terem assassinado alguém.

Ainda dói, dizer isto assim. Assassinado. Assassinado. Assassinado. Porque o meu primo, digo-o desde o primeiro momento, não morreu. Foi assassinado. E dizer isto dói. Tanto. Não só cá dentro, chega a doer por fora.
E não adianta repeti-lo vezes sem conta. Porque não é por repeti-lo que vai doer menos. Aqui não se cria calo. Não se suaviza. Assassinado. É um adjectivo demasiado violento. Dizê-lo então é uma atrocidade. A primeira vez que o disse, quando soube, quando passei a mensagem, foi quando o estalo foi maior. Foi quando o estalo de realidade foi mais violento. Porque dizer que o meu primo morreu seria tão menos doloroso porque morrer todos morremos. Mas assassinado. Assassinado. Assassinado. Nem todos somos assassinados. Assassinado é como ser roubado. Roubado de uma vida inteira que se tem pela frente. Terem-nos assassinado alguém é terem-nos roubado uma parte de nós. Daqueles roubos em que é impossível a recuperação dos bens roubados. E não existem palavras para descrever o que se sente. Sente-se e pronto. Pronto, não. Há que lidar com isso. Não sei, ao fim de 6 meses e 16 dias, como se lida com isso ainda. Não sei se algum dia saberei. Não sei como lidam os meus tios. Como lida a minha prima. Não sei. E egoisticamente espero nunca vir a saber. Porque sei que não sei como eu lido. Talvez vá lidando, com dias melhores, outros menos bons. Porque não quero chamá-los de dias maus. Esses são, sem dúvida, os dos meus tios. Os da minha prima a quem o irmão foi declarado morto aos seus pés.

Não, não quero chamar de dias maus aos dias menos bons que vou tendo, seja em que aspecto for. Porque sei que há quem esteja pior que eu, que tenha dores maiores que as minhas. E que eu adorava poder suavizar, atenuar, ou até curar. Mas não posso. Por isso amanhã lá vou estar. No aniversário da minha tia. O primeiro sem o filho. Que lhe foi roubado por um não-herói que não merece aplausos como esse Palito também não merece.

Vou lá estar, com o meu melhor sorriso. Sincero porque gosto de sorrir para quem precisa de sorrisos. E de lágrimas para os meus tios e para a minha prima já chega. Sorriso que não de orelha a orelha, mas com braços abertos para os acolher, a todos, porque preciso deles e eles de mim e nós de todos os que nos querem bem.

Por isso amanhã lá estou. Porque sim. Porque quero há muito tempo lá voltar. E já devia ter voltado. Volto para o aniversário, o primeiro, de uma mãe a quem roubaram o filho.

E os olhos, os meus, esses, vão estar fixados ao portão. À espera, como desde o primeiro dia, daquele sorriso de orelha a orelha, sorriso de miúdo. Sorriso que nunca mais irá atravessar aquele portão.

Não. Amanhã não vai ser um dia bom. Vai ser apenas menos bom. Mais um dia depois do outro. Mais um dia, 6 meses e 16 dias depois.

5 meses

Foi já há 5 meses que recebi o telefonema: que me tinham roubado o meu primo. Que tinham roubado o sobrinho da minha mãe. Mas pior, que tinham roubado o irmão da minha prima, o filho dos meus tios.

O filho dos meus tios.

…o filho dos meus tios…

Continuo a reviver tudo como se tivesse acontecido ontem. Aquela semana de horror, de revolta, de raiva. Aquela semana de dor. Minha, da minha mãe. Aquela semana de terror e de algo indescritível, pior que dor, dos meus tios e da minha prima. Aquela semana que numa madrugada nos roubou o meu primo, e levou com ele a minha prima e os meus tios. Que nunca mais foram os mesmos. Como poderiam sê-lo? Como poderão voltar a sê-lo?

Ainda não chorei. Ainda não consegui chorar o que tenho engasgado cá dentro sempre que revivo aquela semana que durou uma eternidade, que passou em menos de 5 minutos.

De vez em quando, a voz embarga-se, treme, caem umas lágrimas. Poucas. Nunca aquelas todas que já deviam ter saído e que continuam a consumir-me por dentro. Porque me roubaram o meu primo, porque me transfiguraram a minha prima e os meus tios.

E falo disto sempre que posso. Sempre que alguém esteja disposto a ouvir-me. Porque preciso. Porque não posso guardar cá dentro o que me corrói. Porque ainda não esgotei a raiva, a revolta que vai cá dentro.

Porque quem está na Carregueira está melhor do que estão a minha prima, os meus tios. E simplesmente está, enquanto o meu primo já não.

Não me peçam “menos”. Não me peçam para não “remexer no assunto”. Dêem-me a mão quando precisar. Como quando, há duas semanas atrás, revivi tudo numa questão de segundos só de saber que, finalmente, foi formalizada a acusação. A maior de todas. E a voz prendeu-se. Elevou-se e tremeu. E as lágrimas, sempre poucas, caíram.

Sei que não posso ter o Alexandre de volta. Mas queria, gostava, de ter a Patrícia, o Tio Zé e a Tia Mimi de volta. E isso, isso nunca irá acontecer. Porque numa madrugada, em menos de nada, num acto que, está comprovado, não foi involuntário, nos roubou uma família inteira.