Véspera de Natal. Um dia lindo lá fora. Um céu de um azul intenso, o Sol a assumir o domínio de um dia frio de um Inverno recente. E eu sozinha em casa depois de almoço, com uma tarde inteira pela frente para não fazer absolutamente nada. Não me apeteceu ficar presa em casa com o dia lindo que estava lá fora. E desde o final da manhã a minha cabeça fixou a ideia de reclamar a minha autonomia, a minha independência de volta! Ou parte dela, pelo menos. Apesar do risco consciente. Mas é importante recuperar o poder ir sozinha a algum lado, não estar sempre dependente da minha mãe para me deslocar apoiada para além da bengala.
Tenho plena consciência de que o risco de queda existe. A um nível relativamente alto. Tenho noção das eventuais consequências de uma possível queda. Mas não posso, por simplesmente ter medo, desistir de fazer o que (ainda) consigo fazer. Neste caso, simplesmente deslocar-me do ponto A ao ponto B sozinha. E hoje decidi que era o dia certo para o fazer. Sozinha em casa a tarde toda, nada para fazer, um dia maravilhoso lá fora. E a minha cabeça em loop a dizer-me “vai!” E eu fui.
Ir até à praia que fica mais perto de casa implica chegar ao parque, atravessar a imensidão que é esse espaço que adoro, que me transmite uma paz (quase) inexplicável, chegar ao outro lado e atravessar o parque de estacionamento para chegar à rampa de acesso ao paredão e aí então parar, descansar e apreciar a praia. Mas é um caminho lento, demorado e, até, doloroso. E, só pela longa distância e tempo de caminhada achei por bem não insistir em ir pelo parque. Mas ir à praia tinha que acontecer.
O autocarro que me leva até ao Yoga. É o mesmo autocarro que ando há meses a prometer apanhar para ir caminhar na praia. E hoje não havia desculpa. Consultei o horário, planeei o meu tempo, quase não conseguia cumprir o objectivo de chegar à paragem antes da hora prevista para a passagem do autocarro porque, diz-me a experiência, tantas vezes passa mais cedo… Respirei fundo, vesti o casaco, phones nos ouvidos porque sem música não dá, peguei na bengala, inspirei fundo novamente como quem está a ganhar coragem, e estava!, e saí de casa. Sozinha. Só eu e a bengala…
Não me recordo de quando foi a última vez que saí de casa sozinha para ir a algum sítio sem ser o café do costume. Não faço ideia, mesmo. Mas posso arriscar que já foi há uns meses…
Desci as escadas do pátio e dei por mim a olhar para o chão à procura do caminho menos acidentado, com menos buracos, menos pedras da calçada soltas. Endireitei-me. Voltei a respirar fundo. Sabia que já passava da hora que tinha programado para sair de casa com tempo para poder ir até à paragem com calma, devagar, ao meu ritmo lento e cuidadoso. Dei o primeiro passo sozinha a medo como dou sempre que saio sozinha para as traseiras do prédio onde o piso de alcatrão é mais certo, mais regular, onde os buracos são mais pequenos e mais fáceis de contornar e onde não há pedras da calçada.
Percebi, mais uma vez, que corria o risco de não chegar a tempo à paragem. Mas avancei, ainda assim. A medo, à procura do meu ponto de equilíbrio que nunca sei onde encontro e fiz-me ao caminho. Não sei como o fiz, mas fui a um ritmo mais acelerado do que aquele ritmo cuidadoso e cauteloso habitual. Acho que, por momentos, consegui esquecer, ou pelo menos ignorar, aquilo que me apanhou na curva e me trouxe tantas dificuldades para caminhar sozinha.
Perdi a conta aos pontapés no chão, sempre com o pé esquerdo, as vezes que a bengala bateu nos altos da calçada provocados pelas raízes das árvores ou simplesmente porque o braço esquerdo não estava a colaborar com a minha pressa e não levantava a bengala o suficiente para não bater em nada no chão.
Há muito tempo que deixei de ter pressa e aceitei e assumi um ritmo mais lento. Mesmo antes de sequer existir uma suspeita de que alguma coisa errada se passava comigo. Dizia sempre que não tinha pressa para nada, a não ser cumprir horários, especialmente se fosse o horário do autocarro. E, até nesse caso, mesmo assim…
Cheguei à paragem 5 minutos antes do horário previsto para a passagem do autocarro. Mas eu não confio aquelas previsões…quantas vezes ele não passou já 10 minutos antes da hora…? Sentei-me. E comecei a esperar. E a esperar…e a questionar-me se já teria passado ou não. Até que, finalmente e atrasado, o autocarro chegou.
O autocarro pode ter mil motivos para se atrasar, seja o trânsito, sejam as pessoas a entrar e/ou a sair. É compreensível e, de certa forma, até aceitável. Mas eu tinha uma hora certa marcada. 17h21m. Aquelas horas marcadas que não temos como alterar. Se chegar antes da hora, não tem qualquer problema. Espera-se um bocadinho e pronto. E eu queria mesmo chegar antes da hora. Mas se chegar 1 minuto que seja depois da hora marcada, já não há nada a fazer.
Da minha paragem até à praia que eu queria são apenas 3 paragens, o mesmo que dizer que são 7 minutos de viagem. O autocarro chegou atrasado uns minutos, é verdade. Mas as 3 paragens da viagem, os 7 minutos, fizeram-me chegar mais do que a tempo.
Saí do autocarro e percorri sem pressa os 200 metros até à praia. E lá estava ele naquele imenso e intenso céu azul a preparar-se para mergulhar na linha do horizonte: o Sol a preparar-se para se pôr. E o que eu queria, o que eu quis o dia todo, ia acontecer! Ia, finalmente!, voltar a ver o pôr do Sol na praia!
Aquela que foi a minha praia da adolescência é agora a praia que eu quero para ver o pôr do Sol. E também para ir caminhar na areia, como recomendou o neurologista: na areia seca para trabalhar o equilíbrio, na areia molhada para estimular os pés. Ainda não foi ontem que descalcei as botas e fui até à areia. Mas sei que, em dias menos frios, é a praia ideal para o que preciso de fazer. E, tendo o autocarro tão à mão, não pode haver desculpas!
O Mar estava como há algum tempo não o via: praticamente sem ondas, a lembrar a estabilidade de um lago ou albufeira. Calmo. Muito tranquilo. Como se soubesse que eu estava a chegar. O céu a começar a mudar de cor, mas o azul sempre presente, sempre intenso. E o Sol a descer também ele sem pressa apesar da hora certa marcada para o mergulho na linha do horizonte.
Deixei-me ficar ali sentada no banco a ver, a olhar, a observar. Mas, acima de tudo, a sentir. A paz. A tranquilidade. O sossego daquele lugar que me conta histórias de há mais de 30 anos. Mas, apesar de ter ido sozinha, não estava só. Como nunca estou!
À distância de um clique, ele. Aquele presente de Natal que eu mais queria ali comigo naquela hora marcada para o mergulho na linha do horizonte. Fui partilhando aquele Mar sem ondas que ele conhece. Fui partilhando também o Tsunami que, para ele, sou eu. E aquele mergulho na linha do horizonte a dar ao céu cores que eu há muito tempo não via e que partilhei com ele como se ambos estivéssemos ali, de mão dada comigo ou envoltos num abraço só nosso.
Há muito tempo que não assistia a um pôr do Sol na praia tão bonito como este. E aquele momento em que o Sol desaparece por completo, aquele último pedacinho que, ao mergulhar na linha do horizonte, solta um rápido brilho diferente e especial… Acho que foi a primeira vez que verdadeiramente me emocionei com o pôr do Sol. Na praia ou onde seja, nunca me aconteceu ficar sem palavras com aquele momento. É só um momento. Acontece depressa. Mas mais do que apenas um momento, é um espectáculo emocionante. E, desta vez, não sei se por estar sozinha mas não só, teve um brilho diferente, especial.
Sol posto. E o azul do céu mais intenso. Mais bonito. Mais……mais tudo! E tê-lo partilhado com ele, mesmo à distância de um clique, foi tão bom.
Mas a hora de voltar para casa estava a chegar. Fiz o caminho de regresso à paragem do autocarro, agora do outro lado da estrada. Devagar naquele caminho de chão de madeiras incertas até alcançar o passeio. Atravessar a estrada calmamente e ainda a tentar interiorizar aquele espectáculo que tinha acabado de presenciar. E que espectáculo maravilhoso!
Autocarro mais uma vez atrasado. 2 minutos apenas, nada de extraordinário. Mas a vontade de voltar para casa era zero. É noite de Natal, aquela noite em que a família se reúne. E a minha vontade era passar a noite de Natal na praia. Com ele, claro.
Novamente 3 paragens de autocarro, novamente 7 minutos de viagem. E, ainda na minha cabeça, aquele espectáculo maravilhoso. Aquele espectáculo que, enquanto a minha memória não me trair, não vou esquecer tão cedo. E, a vontade de voltar para casa, nula…
Sair do autocarro e perceber que o café dali ainda está aberto e com a esplanada disponível. Beber um café e fumar um cigarro. Afinal, ninguém em minha casa precisava de mim. Estava tudo tratado e arranjado para o jantar, o meu irmão dormia no sofá, a minha mãe sempre de um lado para o outro e a certeza de que, mesmo que eu estivesse em casa, não seria de grande utilidade…
Enfrentar o caminho de regresso. Agora de noite, sem perceber muito bem o estado da calçada, confiando na experiência de já ter feito aquele caminho tantas vezes. Mas agora a uma velocidade mais lenta e mais segura. E, no caminho de regresso a casa, perceber que, para mim, o Natal já estava feito…
Perceber que, apesar dos meus sobrinhos ausentes, apesar da distância dele que eu queria tanto que estivesse e fosse (sempre) presente, a maior e melhor de todas as prendas de Natal que eu poderia receber fui eu mesma que me ofereci: o desafiar-me a mim mesma a ir sozinha ver o pôr do Sol na praia e ter aceite o desafio que foi superado sem quedas nem sustos nem acidentes! Simplesmente a minha cabeça insistiu em dizer “vai!“. E eu fui. E não só fiquei emocionada com o espectáculo do pôr do Sol na praia como também fiquei feliz e orgulhosa da pequena grande conquista de ter ido sozinha e voltado em segurança. Aquilo que, para mim, foi a prova de que eu consigo! Posso ter algumas dificuldades e/ou limitações, mas, querendo muito, eu consigo!