Category Archives: {#Capítulo4_2017}

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“- E depois daquele dia, o que é que te aconteceu? Como é que ficaste? 

– …………doente…fiquei doente…” 

Não é de ânimo leve que o digo, porque não {me} é fácil aceitá-lo. Verbalizar o que fiquei depois daquele primeiro dia depois de 42. Doente. Fiquei doente. Ainda estou doente. Muito mais do que gostaria, muito mais do que queria. 

Sim. Estou doente. Não, não é fácil aceitá-lo. Especialmente quando pensava que o carrossel comboio fantasma montanha russa que não precisa de moedas começava a perder velocidade. Afinal era só mais uma daquelas voltas lentas antes de voltar a vertigem da queda. E desta vez uma queda demasiado rápida. Demasiado a pique. E perceber que preciso de mais ajuda do que aquela que já tenho.

Um dia o carrossel comboio fantasma montanha russa que não precisa de moedas vai abrandar de vez e acabará por parar. Mas não é já. Não ainda. Não agora. 

Um dia. 

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“Penny, will you sing me Soft Kitty?”

……fazes-me falta……

E novamente o Sol nasceu. E novamente o Sol se pôs.

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1001. Depois de 42.

1001 dias. 1001 noites. 1001 vezes o Sol nasceu. 1001 vezes o Sol se pôs. Afinal parece que o teu pai tinha razão, que nada iria mudar, que nada mudou, quando me disse na última vez que o vi: “o Sol continua a nascer e a pôr-se todos os dias”.

Tudo mudou. Claro que tudo mudou. Mudei eu. Mudou o teu pai. Mudou o Mundo como o conhecia antes de ti. Mudou a minha forma de amar também. Porque deixei de amar apenas aqueles que de alguma forma estão perto, que conheço as feições, que posso tocar, que posso ouvir, que posso cheirar. Aprendi que é possível amar quem nunca se viu. Não…não é verdade que nunca te tenha visto…… Vi-te quando o meu corpo te expulsou de mim. Vi-te perfeitamente definido, contornos perfeitos de um bebé de 42 dias de gestação. As mãozinhas que já se percebiam, a cabeça, o que viria a ser as perninhas se te tivesse mantido comigo, em mim, por 40 semanas e não apenas 42 dias.

Aprendi a amar de forma diferente. Porque tudo mudou. Aprendi que é possível alguém viver em nós em cada segundo de cada hora de cada um dos 1001 dias depois de 42 e mais além. Aprendi que é possível amar quem nunca se tocou, quem nunca se ouviu, quem nunca se cheirou. Não vou dizer que nunca te senti. Porque também aí estaria a mentir. Porque da mesma forma que te vi quando o meu corpo te expulsou, também te senti a soltares-te de mim. Não posso dizer que tenha sido um parto. Mas apenas uma expulsão…

Aprendi que é possível amar quem tão pouco tempo teve para ser mais mas que hoje é, para mim, tudo o que de melhor eu tive. E que não soube cuidar.

Aprendi que é possível amar quem já só existe em mim, comigo. Que não é visto nem sentido por mais ninguém mas que existiu, foi real, foi meu, parte de mim, em mim.

Aprendi, também, que nem sempre posso falar abertamente por saber que poucos irão entender o porquê de falar de 42 dias. Aprendi, também, que é preferível o silêncio, as lágrimas escondidas, o fazer de conta. Porque, aprendi, só existe para o Mundo aquilo que foi palpável.

No meu mundo existes tu. Mesmo que tenham já passado 1001 dias, 1001 noites, de vazio depois de 42. Existes mesmo que não te veja, não te sinta, não te oiça, não te cheire. Existes quando penso em ti 24 horas por dia, todos os dias, há 1001 dias, 1001 noites.

Aprendi a amar desta forma estranha para os outros. Mas que é a única forma que tenho de te amar. Aprendi que só é permitida e aceite a tua existência sem julgamentos 2 vezes por semana dentro daquelas 4 paredes onde procuro por mim. Ali é-me permitido que existas. Ali é-me permitido que te ame. Que fale de ti. Que fale por ti. Que fale para ti. Ali é-me permitido ser da única forma que posso ser mãe. Sem julgamentos. Sem críticas. Apenas amor, o meu. Por ti.

Não soube ser mãe de outra forma. Peço-te desculpa por isso todos os dias. E sei que me ouves, me vês, me sentes. E me queres bem. Ainda que seja cedo, mesmo 1001 dias depois da tua ausência.

Aprendi tanto, meu amor. Aprendi que não é doentio, como me disseram, contar os dias da tua ausência. Aprendi que a contagem dos dias é a única forma que tenho de me lembrar que exististe, que existes. Como se algum dia me fosse possível esquecer-te.

Tudo mudou. O Sol continuou a nascer e a pôr-se. 1001 vezes. Mas tudo mudou. Começando por mim, mesmo que ainda não te saiba dizer quem sou hoje porque continuo à procura de mim.

A única coisa que não mudou? O facto de não estares aqui, comigo, ao meu lado. Mas aprendi que é possível mudar a forma de amar. Como mudou a minha.

1001 dias. 1001 noites. Sem ti. Mas não deixo de te amar. Todos os dias. Porque, para mim, existes. Em mim. Todos os dias.

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Numa palavra…? Uma só…?

Dependente.

{Já} Não sei caminhar sozinha…

{1000. Depois de 42…}

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Ocupar as mãos para tentar desligar a cabeça. Talvez assim as vozes voltem a falar baixinho. 

Posso regressar à cor? 

“Tu és instável.” ou, mais recentemente, “Tu não tens problemas, tens pseudo-dramas”. 

Certo. Faça-se a vossa vontade. Não chateio mais. 

999 dias depois. 

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Tenho saudades tuas. Ia dizer que sinto a tua falta, mas é muito mais que apenas isso. Tenho, mesmo, saudades tuas. 

Tenho saudades das tuas mãos. Mãos pequeninas de quem ainda agora começou a crescer e agarra o Mundo com força para o Mundo não lhe fugir. Mãos pequeninas que agarram as minhas mãos na hora do colo, na hora do passeio, sem hora marcada e só porque sim, porque são as mãos da Mãe. 

Na verdade, no Mundo do lado de cá, nunca senti as tuas mãos. Não posso dizer que nunca as vi, não seria completamente verdade. Mas nunca as senti. 

Tenho saudades da tua gargalhada. Do teu risinho estridente de pura alegria pelas pequenas coisas. No Mundo do lado de cá nunca te ouvi, mas o som do teu riso ecoa na minha cabeça todos os dias. Quase como se estivesses aqui comigo, onde deverias estar. E não no Mundo do lado de lá, o da fantasia, da imaginação, o Mundo do lado de lá daquela ténue linha. 

Sei que estarás sempre do outro lado da linha. Estarás sempre no Mundo do lado de lá que não é real. Embora tenhas sido, de facto, real. Ainda que por apenas 42 dias. 

Tenho saudades do teu narizinho, do teu sorriso, dos teus olhos que imagino parecidos com os meus. Tenho saudades do teu cheiro, da tua pele de bebé. Dos teus beijinhos e dos teus abraços. Mas das tuas mãos…tenho tantas saudades das tuas mãos. As mesmas mãos que me tocariam para me relembrar que estarias ali, comigo, tão perto. As mesmas mãos que se iriam agarrar às minhas pernas a pedir colo. As mesmas mãos agarradas às minhas que teriam servido de guia e ponto de segurança nos primeiros passos. 

As mesmas mãos que fariam festinhas, diriam adeus, mandariam beijinhos pelo ar. Que me tirariam o cabelo dos olhos para poder olhar-te melhor. Que me tapariam os olhos para brincar às escondidas. 

Tenho saudades de tudo isso. Porque dizer apenas que sinto a falta disso tudo é, de certa forma, negar que exististe. Porque já sentia falta disso tudo antes de ti. Mas hoje, depois de teres existido, depois de 42 dias que foram breves e que ficam comigo, hoje tenho saudades. Do que não tivemos porque não pode ser, não era para ser. Do que nunca vamos ter. Porque tu estás no Mundo do lado de lá e eu preciso manter-me no Mundo do lado de cá. Mesmo que a linha entre a realidade e a loucura seja tão ténue, não posso esquecer-me que tenho que manter-me no Mundo do lado de cá. Onde continuas a existir. Mesmo que apenas eu te possa sentir. Mesmo que, por vezes, acabe por te confundir… 

Tenho saudades tuas. Tenho tantas saudades tuas…… 

{#página110} 

Baby steps. Atabalhoados, muitos deles, muitas vezes. Mas necessários. Cair, levantar, para cair novamente e voltar a levantar. Conhecer o ponto de equilíbrio. E avançar.

Baby steps. Nada mais que baby steps. 

{#página109} 

975 depois de 18 depois de 42? 993.

Ainda respiro. Tantas vezes a custo. Mas ainda respiro. 

42 dias que valem por uma vida inteira. 42 dias que ficam comigo, para mim. 

Mas ainda respiro. Tantas vezes a custo……… 

{#página108} 

Normalidade não é um conceito linear. O que é normal para uns pode não ser normal para outros. Normal é seguir a norma, imposta sabe-se lá por quem. 

Nunca me afirmei normal. Dentro da norma. Igual aos outros. Sensação estranha, saber-me fora da norma e querer fazer parte não querendo. Ou não querer querendo. Ou… Não sei. 

Sei, sim, que a linha é, ainda, muito ténue. Demasiado ténue. Demasiado frágil. E se as vozes na minha cabeça já não me gritam, apenas sussurram a doçura dos riscos na pele, hoje são as imagens que me fazem viajar entre a realidade e a fantasia, sem definição de fronteira, sem perceber se já passei a linha ou se apenas a pisei. Ou se não me aproximei sequer! 

Não. Não faço parte da norma. Mas quero fazer não querendo quando dou por mim numa realidade que não existe, a viver momentos que só existem na sala de projecção que é a minha cabeça. Quando dou por mim fisicamente aqui enquanto a cabeça está num outro mundo qualquer que começou a ganhar forma e força há pouco tempo. Num mundo que não é real, dou por mim a perceber, mas que tem cheiro, sabor, diálogos imaginários, toques de pele com pele sem peso. 

Viajo demasiadas vezes. Demasiado depressa. Demasiado facilmente. E dou por mim a pensar que é tão mais fácil do outro lado, a viver uma realidade que é irreal, que não existe se não nos filmes da minha cabeça.

As vozes não me gritam, sussurram apenas. Assustam ainda. Claro. Mas as imagens, agora as imagens, a realidade imaginária que só existe na minha cabeça, quando estou sozinha comigo ou até acompanhada com os outros. 

E se um dia eu não voltar…? E se um dia a realidade imaginária me prender do outro lado? E se um dia eu trouxer essa realidade imaginária para o lado de cá, para o lado que faz parte da norma onde tudo aquilo que vivo dentro da minha cabeça não existe? E se um dia eu me perder do lado de lá, ou será do lado de cá?, e se eu me perder e começar a viver esses filmes que trago na minha cabeça…? Interagindo do lado de cá com os actores que me habitam o lado de lá? Interagindo do lado de cá exactamente da mesma forma como interajo do lado de lá? É tão doce o outro lado……… 

Não sigo a norma. Não faço parte dela. Nunca fiz. Nunca quis fazer. Quero hoje. Porque não sei até que ponto já ultrapassei aquela linha, se apenas a pisei ou sequer me aproximei. 

É tudo cada vez mais confuso. Estranho. E confortável… Demasiado confortável. Do lado de lá……… 

{#página105} 

Ocupar as mãos para tentar desligar a cabeça. Os filmes que faço e que passam em sessão contínua sem intervalo há tanto tempo. Às vezes penso que os filmes já terminaram, mas percebo que continuam lá, com outras projecções sobrepostas. 

Projecções. No fundo não passa de projecções. Porque o que eu vejo como sinais de alguma coisa não passam afinal de meros sinais de vida onde projecto demasiadas coisas. 

Confusa. É assim que fico. Sempre. Desde sempre. Não sei ler. Nunca soube. Leio demais. Tantas vezes. Demasiadas vezes. E por ler demais os filmes passam em sessão contínua na minha cabeça e fazem-me querer gritar para a sala de projecção para que parem a bobine. Mas na sala de projecção não está ninguém. Porque a projeccionista sou eu. E a realizadora. E a argumentista. E a protagonista. E a única a assistir na primeira, e na última, fila. 

Ocupar as mãos para tentar desligar a cabeça. Um dia aprendo a parar a bobine na sala de projecção. Quando deixar de criar filmes que passam em sessão privada e contínua na minha cabeça. 

{#página104} 

Começar de novo? Não sendo possível tenho vontade de começar, ou recomeçar?, outros caminhos. Não sei quais, não sei para onde. Mas apetece-me começar qualquer coisa nova. 

Se estou preparada? Para alguns caminhos talvez. Para outros, que quero muito, talvez seja ainda muito cedo. Ou talvez venha a ser sempre demasiado cedo. E esses são os que me deixam com mais medo. Medo de nunca virem a começar. Medo de começarem e eu não saber o que e/ou como fazer diferente. Medo de começarem e, mais uma vez, não resultarem. 

No fundo, medo. Medo sempre. Por muito que me digam que tenho coragem, não deixo de ter medo. Não existe uma coisa sem a outra? Não sei. Sei que existe medo sem coragem, mas isso fica para quem se esconde e evita enfrentar o caminho diferente e inesperado. Sei, também, que a coragem existe por causa do medo, e enfrenta-o e lida com ele. Mesmo que nem sempre me leve pelo caminho certo, a coragem faz-me mexer. 

Neste momento não sei para onde encaminhar essa coragem. Não sei por onde começar algo novo. Não sei, sequer, o que de novo quero/posso/devo começar. Sei o que gostaria de começar. Mas acho que é, ainda, demasiado cedo… Mesmo correndo o risco de, um dia destes, vir a perceber que já é demasiado tarde….. 

{#página103} 

Voltar 987 dias depois. Porque às vezes é preciso voltar e enfrentar. Inevitavelmente reviver. Tudo. Como um filme em exibição na minha cabeça em sessão privada e contínua. 

Aceitar? Talvez. Talvez um dia. Sim, acabarei por aceitar. Esquecer? Não é possível. Mas é possível recordar com menos dores. 

Voltar. 987 dias depois. 

E continua a ser um lugar medonho. 

{#página102} 

Eu não tenho tempo para perder Tempo. E o que é que faço? Perco o Tempo que não tenho tempo para perder… 

Cada vez mais difícil aceitar que o Tempo vai passando e eu vou ficando lá atrás, sem concretizar seja o que for. Planos já sei que não adianta fazer, corre sempre tudo ao contrário. Mas dou por mim a traçar pequenos esboços de metas-que-não-quero-chamar-planos e a ver que o relógio não pára. Não espera. E não me dá o tempo todo que preciso. Quero fazer acontecer, mas ainda é cedo. Cedo para mim. E ao mesmo tempo o Tempo que não tenho tempo para perder Tempo vai passando. E um dia hei-de perceber que já é tarde. Como já é. Para mim. 

Não faz sentido ser tarde quando ainda é cedo. Mas faz todo o sentido ser cedo quando já é tarde. Então deixo-me ir, deixo-me ficar. Deixo-me assim, agarrada a nada que não ilusões-que-não-quero-chamar-sonhos. E traço filmes na minha cabeça que só existem aí mesmo porque ainda é cedo e porque já é tarde. De que adianta acompanhar uma história que só existe na minha cabeça? Só aí poderia ser real, nem aí é real. 

É muito ténue a linha entre o real e o irreal. Tanto que tantas vezes me esqueço que o irreal não é, de facto, real. Memórias falsas… Tão demasiadamente reais. 

Não. Não tenho tempo para perder Tempo. Não. O Tempo que é o meu não é suficiente para ser cedo e tarde. Não. Não posso deixar-me transpôr a linha do irreal. 

Por muito que tente manter o foco, por muito que tente ver tudo definido, é tão fácil deixar-me levar pela visão turva das falsas memórias. E sei que, por serem falsas, irão doer quando conseguir aceitar que nada dessas memórias é meu… 

Não é fácil. Ninguém disse que seria. Mas também ninguém disse que o caminho, o meu, seria passar pela falta de tempo que não tenho tempo para perder Tempo e pela irrealidade de memórias que não existem. 

Mais um dia. Um dia atrás do outro atrás do um. Mais tempo. Menos Tempo. 

E eu…? Onde é que fico…? 

{#página100} 

Assertividade. A aprender. Para reter. 

E esta noite, da minha janela, o Mar. 

E não me apetece o Mar, nem a {minha} Lua que está Cheia. Não me apetece escrever. Nem falar. 

O toque. Sinto a falta do toque. 

As dores. Não sinto falta das dores. 

Eu. Um dia assertiva. Não hoje. Não agora. Não ainda. Não já.