Ontem, ao final do dia, o meu chip mudou. Deu uma volta de 180 graus. Durante toda a manhã, hora de almoço e princípio da tarde sempre muito bem disposta. Ao ponto da enfermeira, que me reconheceu de outras andanças no serviço de enfermagem do Centro de Saúde de que eu não me recordo, ao me receber dizer de imediato: “lá vem ela, bem disposta e animada como sempre. Aliás, nunca a vi noutro registo!”. Pelos vistos, eu posso não me lembrar de muitos episódios na enfermagem do Centro de Saúde, mas há quem se lembre de mim. E, felizmente, por bons motivos. Mas a verdade é que, ao chegar a casa, ou ainda antes na esplanada do costume que eu não me lembro se fui lá ou não no regresso a casa, algo mudou em mim por um qualquer motivo que eu própria desconheço.
Aquela miúda que esteve sempre bem disposta, no registo habitual de sorrisos fáceis, de brincar até com (as minhas) coisas sérias, essa miúda perdeu-se pelo caminho e o chip deu uma volta de 180 graus. Negativos. A noite não foi fácil. Aquela vozes que ecoam na minha cabeça com ideias parvas encontraram um alojamento confortável para permanecerem sem serem convidadas e por tempo indeterminado. E sussurravam-me ao ouvido sobre comportamentos auto-lesivos e como era tão fácil de os concretizar…
A luta contra as vozes foi dura, como é sempre. Mas o meu cansaço, o meu corpo, a necessidade de descanso e o meu sono acabaram por vencer.
Hoje de manhã não demorei muito tempo até perceber que a luta se mantinha. Não só a luta das vozes e eu, mas especialmente a luta de mim contra mim própria. Sem ânimo para aquele sorriso fácil, mesmo que esteja escondido pela máscara, sem ânimo para estar na fisioterapia, sem ânimo sequer para estar na esplanada a saborear um café sossegada e sem pressa.
Não me lembro do caminho de regresso a casa. Sei que cheguei cansada, com sono, com frio, com fome. Mudei de roupa, almocei e logo de seguida vim para o cadeirão beber o meu café tendo projectado de seguida enroscar no sofá e deixar-me levar pelo cansaço e pelo sono. Mas não aconteceu…
A tarde foi passada no cadeirão entre mensagens com ele e buscas que me confirmassem o pouco que já sei sobre os comportamentos auto-lesivos. E a sentir, sobre mim, um peso enorme, absurdo, que se instalou em mim ontem sabe-se lá porquê, sabe-se lá como. Uma vontade enorme de chorar e, mais uma vez, não conseguir fazê-lo. Até que lhe disse que o que estava a precisar naquele momento era de um colo. Presencial. Que eu pudesse tocar. Cheirar. Sentir os dedos a passarem no meu cabelo. E esse colo, presencial, não o iria ter.
Foi pouco depois que entrou a mensagem. “Posso ligar-te? É rápido. É só para te dizer uma coisa.” Claro que sim, podes ligar-me sempre que quiseres. E o telemóvel tocou. E, do outro lado da linha, aquela voz. Que me faz sempre sorrir. Que me faz sempre tão bem. Que me traz para perto de mim quem está geograficamente longe. E ele, que não gosta de falar ao telefone, que diz que não diz nada de jeito, falou. Conversou. Conversámos. De viva voz. Tal como eu precisava há tanto tempo. E se, no início da chamada, eu mal conseguia falar por falta de ânimo, por ainda sentir aquele peso horroroso em cima de mim, aos poucos comecei a sentir-me mais leve, mais serena, mais tranquila. Mais segura. Completamente acolhida e aconchegada. Porque tê-lo no outro lado da linha do telefone foi como tê-lo sentado ao meu lado, dedos da mão enrolados e mão pousada no meu joelho… E eu, claro, encostada a ele, cabeça apoiada no ombro dele.
E, novamente!, o chip mudou. O ânimo regressou. A corujinha voltou a voar. E eu voltei a ser eu…
Era só para ele me dizer uma coisa. Que ia ser rápido. Mas foram 50 minutos com quem não gosta de falar ao telefone porque, supostamente, não tem nada de jeito para dizer. Mas para mim, estando ao telefone com ele, não importa o tema da conversa. Porque, na verdade, falamos de tudo. Sempre. E só foram 50 minutos porque o serviço dele acabou por ditar o final deste aconchego que eu não esperava mas que fez tanto por mim! Que me fez voltar a ser eu!
O chip voltou a mudar. Agora de forma positiva. Felizmente. E ele não sabe, de certeza, a diferença que aquele telefonema fez.
Costumava dizer-lhe que era o melhor que me aconteceu. E há pouco tempo percebi que essa conjugação do verbo remetia para o passado. Como se tivesse ficado lá para trás. Quando, na verdade, todos os dias está presente. Corrigi a frase. E, agora, todos os dias lhe digo que é o melhor que me acontece todos os dias. Porque é.
E, às vezes, para mudar o chip para um polo positivo é tão simples quanto 50 minutos ao telefone. Como hoje.