Falar dói. Falar sobre o que nos dói ainda dói mais. E hoje foi dia de falar.
De manhã acordar a horas por acaso, sem bateria no telemóvel, sem o despertador tocar, claro. Mas ainda assim acordar a tempo de fazer tudo o que era preciso fazer antes de sair de casa e, mesmo assim, chegar a tempo de apanhar o autocarro à hora de sempre. Tinha dado a fisioterapia por perdida quando, ao acordar sem despertador e sem saber que horas eram, olhei para a janela e, a julgar pela luz lá fora, acreditava que já seria meio dia e meia. Não eram. Eram 8h35. Foi fazer tudo a correr, sair de casa às 9h30 sabendo que o autocarro passa às 9h30 e, apesar de a paragem ficar a 500 metros, eu não consigo andar (muito) depressa. Mas hoje consegui provar a mim mesma que, afinal, quando é preciso até consigo. Muitos desequilíbrios pelo caminho, alguns tropeções, mas consegui chegar à paragem do autocarro 30 segundos antes do autocarro. Foi uma pequena (grande) vitória. Que me custou horrores. Por causa das dores, por causa dos desequilíbrios, por não gostar de começar o dia a correr. Mas o que importa é que consegui!
Depois da fisioterapia, seguir para onde queria ir almoçar hoje em Almada. Um calor insuportável. E aquele sítio que nunca fecha, hoje estava fechado para obras de remodelação… Seja! Na cafetaria do Hospital também se come bem e havia consulta marcada para as 15h30.
Seguir (sempre) pela sombra até à paragem de autocarro e, ainda, um calor insuportável. Apanhar o autocarro, seguir para a cafetaria e, naquele corredor, ficar a conhecer a sensação de estar numa fornalha, tal era o calor.
Almoçar, beber café e seguir para a consulta. Um calor mais do que insuportável, infernal! E a consulta naquele edifício fora do corpo principal do Hospital, com uma rampa para subir à torreira do Sol. Bem-vindos ao edifício dedicado às consultas de Saúde Mental do Hospital Garcia de Orta…
Chegar lá e perceber que a sala de espera não tem ar condicionado e a única ventoinha de serviço não era suficiente para acalmar o calor…
Foi dia de voltar à consulta de Psiquiatria. Com aquele psiquiatra que, na primeira consulta em Abril, se apresentou pelo primeiro nome deixando de parte o título de Doutor e o apelido. E que, nesse exacto momento e com essa exacta atitude me conquistou.
A primeira pergunta que me fez eu já sabia qual seria: como é que vai a Depressão? A minha resposta não podia ter sido mais simples: “quanto tempo é que temos?” e, claro, rimos os dois. Porque ambos sabemos que, nas consultas, seja de que especialidade for, o tempo é contado ao segundo. E, da mesma forma que eu sabia que tinha muita coisa para dizer, ele percebeu que havia essa necessidade.
Falei de tudo: do querer chorar e não conseguir, das faltas de resposta concretas e verdadeiras do meu médico de especialidade, do sentimento de solidão e o porquê de me sentir assim, da minha necessidade de falar com alguém que esteja a passar ou já tenha passado pela mesma fase que eu, da minha negação e do ainda não aceitar o que tenho, do desconhecer sequer em que ponto estou para, posteriormente, poder definir o meu mapa. Do não conseguir ainda assumir que não é uma simples condição mas sim uma doença. Que eu não procurei, não desejei, nunca pensei sequer que me fosse acontecer. A mim. E ainda estar na fase do “porquê eu?”…
Disse-lhe que estou frustrada, zangada, revoltada, magoada. E sem respostas do médico especialista. “Acho que é preciso acordarmos o Dr. Miguel”, disse-me ele. E eu disse-lhe que sim!, está mais do que na hora! Só não sei o que fazer mais. Disse-lhe que entendo perfeitamente o caos que deve estar naquele serviço neste momento com a saída de sete médicos mais três de baixa. Mas eu preciso de resposta às minhas questões, e que sejam respostas coerentes, verdadeiras e que não sejam só de dizer por dizer.
No final da consulta fiquei com a sensação de que sim!, o médico de nome próprio que dispensa título de Doutor e o apelido, me entendeu e realmente me ouviu. Decidiu não mexer na medicação porque, afinal, eu até saio de casa todos os dias, para a fisioterapia e para beber um café e, para ele, é sinal de que a Depressão está estabilizada. Mas, para mim que a sinto todos os dias, ela está a agravar-se. Porque, desta vez, omiti pormenores que até de mim tento esconder…
A próxima consulta ainda não foi marcada. Mas já sei que não será com ele. Vai-se ausentar “por uns meses” mas vou continuar a ser acompanhada pelo Dr. Nuno, seja ele quem for. E quando me disse que se ia ausentar “por uns meses” não nego que tremi. Contei-lhe da experiência da psiquiatra anterior com quem só tive uma consulta e que logo de seguida deixou de trabalhar no Hospital. E, muito desanimada fiz-lhe um pedido. “Dr. posso pedir-lhe uma coisa…?” Claro, foi a resposta.”Prometa-me que volta…” Nem um segundo depois, a resposta: “Prometo que volto! Vão ser só uns meses, mas para o ano volto!” Não sei para onde vai, o que vai fazer, mas quero muito que volte! Porque com o médico de nome próprio que dispensa título de Doutor e o apelido houve empatia desde o primeiro dia! E isso é tão importante!
A conversa durante a consulta correu ligeira, mas falar doeu-me. Sobretudo falar sobre aquilo que me apanhou na curva. Pareceu fácil, mas não foi. Tinha (e tenho!) uma grande necessidade de falar sobre isso…
E hoje, já em casa, o telefone tocou. E desta vez houve retorno à minha tentativa de contacto de sexta feira. E, sem darmos muito por isso, assim se passaram duas horas ao telefone. A falar do quê? De mim. Do que se passa comigo. Disto que me apanhou na curva. E, pela primeira vez, foram abordados todos os assuntos relacionados com isto e com o como estou a lidar, o facto de ainda não ter encaixado, de a ficha ainda não ter caído, de ainda estar em negação. Do não pronunciar facilmente o que tenho. Nem com médicos que me acompanham nem com o fisiatra ou as fisioterapeutas. E, agora que penso nisso, nem com a médica de família eu sou capaz de chamar os bois pelos nomes…
E foi então que me caiu uma ficha… Desde sábado que digo que não me lembro da sessão de massagem na fisioterapia de sexta feira. Recordo-me do momento em que a massagista começou a espalhar o creme. Mas não me lembro de mais nada até ela tirar de cima de mim os cobertores quentes. Durante todo o fim de semana me fez confusão não me lembrar de rigorosamente nada da massagem. Foi como se não tivesse acontecido. Mas aconteceu. E hoje, quando começámos a massagem comentei isso com ela. “Como assim? Não se lembra? Estivemos a falar do seu diagnóstico…” e foi aqui que, ao telefone, quando falávamos sobre o não chamar os bois pelos nomes, me caiu esta ficha: simplesmente bloqueei essa conversa da minha memória… Continuo a não recordar os pormenores da massagem em si, mas agora já me recordo do que falámos.
Sei que a mente tem o poder de nos proteger. E não duvido que foi isso que aconteceu… Porque eu não falo do meu diagnóstico, ou do processo até ele, muitas vezes. E, mesmo na fisioterapia, seja com o fisiatra ou as fisioterapeutas, raramente tenho chamado os bois pelos nomes…
Não consigo pronunciar o nome daquilo que tenho, que me apanhou na curva, que eu não procurei mas que me encontrou e veio para ficar para sempre. Nem aqui consigo escrever o nome. Porque, sempre que tenho que o referir por algum motivo, dói. Muito!
E sim, falar dói. Falar sobre isto dói. Mas, se há umas semanas dizia que queria ter uma conversa normal, agora tenho muita necessidade de falar sobre isto. Não sei se me vai ajudar a aceitar. Mas preciso de ter alguém do outro lado da mesa da esplanada, da mesa do restaurante, do banco do jardim, seja lá onde for!, com disponibilidade para me ouvir. E fazer perguntas. E obrigar-me a responder. Pensar, ponderar e responder. Mesmo sabendo que falar dói.
E se chorar óptimo! Afinal, e como foi hoje dito ao telefone, é preciso fazer o luto! Porque quem eu era há 2 anos já não é a mesma que escreve aqui hoje. E o luto tem que ser feito… E por isso escrevo. Mas, o que eu preciso mesmo é de falar, ouvir e ser ouvida. Só assim consigo avançar neste luto que tem que ser feito…