Em Maio encontrei aquele que, disse para mim mesma, era o caderno certo para apontar sintomas, dúvidas, questões, tudo aquilo que queria apresentar ao neurologista no dia da consulta e que seriam para conhecer melhor esta coisa que me apanhou na curva e que eu ainda estou a conhecer e a aprender sobre. A consulta, agendada em Fevereiro antes do internamento e dos infindáveis exames, ainda antes do fecho de diagnóstico, acontece esta segunda feira de manhã. As questões que quero esclarecer, as dúvidas que tenho, as perguntas para as quais quero resposta são muitas. Tantas. E o caderno de continua por estrear…
A esferográfica está lá, o caderno anda na minha mochila todos os dias. Porque a qualquer momento pode ser o momento. Em que perco o medo e assumo que estou apavorada com tudo isto. E, para combater esse medo, para acalmar esse pavor, começo a pôr no papel tudo o que quero levar para a consulta.
Mas, já sei, as dúvidas, questões e perguntas são tantas que nem eu sei quais são. Por isso é que (ainda) não escrevi nada. E ou escrevo amanhã ou não sei o que fazer quando entrar para a consulta.
Não vale a pena mentir a mim mesma e dizer que estou a lidar bem com tudo isto, porque não estou. Que não tenho medo quando estou apavorada. Que não é nada que não seja possível combater quando as dificuldades são já muitas e eu não sei nem o que fazer nem por onde começar.
Aparento, por fora, uma calma que não tenho por dentro. E as vozes na minha cabeça estão de volta e fazem muito barulho que me deixa ainda mais confusa.
Há relativamente pouco tempo dizia que estava perdida por estar num sítio sem o pino de localização. Ainda não tenho o pino de localização mas já tenho várias placas informativas de eventuais caminhos a seguir. Já passei a primeira meta que era aquela que eu esperava há meses: o início da medicação. A primeira meia-dose já aconteceu. Daqui a três dias é dia de receber o restante. E foi ao passar essa primeira meta que começaram a surgir as placas informativas de eventuais caminhos a seguir. Mas continua a faltar-me o pino de localização. E esse tem que ser o neurologista a indicar-me o local. Só depois vou poder perceber quais são as placas informativas que posso seguir com segurança.
Eu sei que a medicação não me vai curar, claro, afinal esta coisa não tem cura. Também sei que não vai tratar sintomas e fazer regredir as limitações e dificuldades que já tenho. Vai, sim, travar ou abrandar a progressão desta coisa. E isso já é tão importante e necessário. O resto, o alcançar alguma espécie de melhora se for possível alcançar, tem que passar por muito trabalho meu. A fisioterapia, claro, será para manter sabe-se lá até quando. O Yoga, que também tem um papel muito importante naquilo que procuro alcançar, será para retomar, mas nunca antes de Novembro. Mas falta o resto. Ginásio. Piscina. Caminhadas até à praia quando não chover. Estão nos meus planos. E é também aqui que o neurologista vai ter que me ajudar. Dizer-me o que posso ou não fazer. O que devo ou não fazer.
Estou muito perdida ainda. Sei que na consulta vou querer saber o resultado de todos os exames feitos em Fevereiro, o que é que revelam sobre as lesões que sei que tenho. Quantas lesões são. Onde é que estão localizadas. O que é que afectam. Vou querer saber tudo sobre mim, porque é de mim que se trata.
Vou querer saber o que posso esperar. O que devo esperar. O que não devo esperar. Como evitar aquela imagem de recurso a uma ferramenta que recuso por não a aceitar para mim.
Sei também que é importante aceitar esta coisa que me apanhou na curva. Esta coisa que insisto em nem sequer pronunciar o nome sempre que o puder evitar. Como agora. Não é para esconder de ninguém, não é para me vitimizar. É só mesmo porque ainda continuo a não querer aceitar que é isto que tenho. E também porque pronunciar o nome disto é torná-lo (ainda mais) real. E eu continuo à espera de acordar de um longo sonho menos bom. Claro que não vai acontecer. Eu sei que não. Mas…
O neurologista vai ter um papel importante no processo de aceitação. Mas o trabalho maior vai ser, claro, feito por mim com a preciosa ajuda do psicólogo. Eu não sei como se faz para aceitar um diagnóstico de uma doença sem cura e que me virou a vida do avesso e ainda agora estamos no início… Não sei mesmo. Sei que já tenho saudades da outra Eu, aquela que eu era antes de sequer se levantar a suspeita e que morreu com o fecho do diagnóstico. Tenho andado no limbo à espera da medicação e assumi a data da primeira meia-dose como a minha data de REnascimento. Uma espécie de Fénix a renascer das cinzas. Mas esse processo assusta-me. Porque não sei quem é esta nova Eu. E tenho medo que seja tão diferente da anterior…
Ele disse-me há dias que eu devia estar contente pelo que tenho alcançado. E sei que se aplica também ao que ainda vou alcançar. Mas e se o que eu conseguir alcançar não for suficiente? Se não for o que me fará chegar ao objectivo de me transformar na melhor versão de mim que me for possível? Tenho medo de desiludir. Seja desiludi-lo a ele, seja desiludir quem me apoia, seja desiludir a minha Mãe que está acima de todos os outros. E, mais importante e o que mais me assusta realmente, tenho medo de me desiludir a mim mesma… Desenhar objectivos na minha cabeça, programar todos os passos para cuidar de mim no campo da minha recuperação e depois…e depois não ser capaz de o fazer.
Eu tenho, neste momento, um enorme nó no cérebro. Estou confusa. Quero tudo e não quero nada. Mas quero, acima de tudo, sair deste filme! Não vai acontecer, eu sei. E vou precisar tanto de todos aqueles que gostam de mim e me querem ver bem. Não precisam de me vir segurar na mão. Só preciso que me aceitem neste papel de uma nova Eu. Tão simples e tão complicado quanto isso.
A noite, hoje, já há muito tempo que passou a madrugada. Mas, novamente, acompanha-me a ansiedade e a inquietação. E, também, aquilo que eu tenho tentado negar e esconder de mim mesma: o medo. O melhor a fazer, por agora, e mesmo que ainda vá ser preciso algum tempo para me convencer a mim mesma a ir para a cama, é dar o dia por terminado. Um dia que foi, todo ele, dedicado a ver o tempo passar.
E não me posso esquecer: amanhã é o último dia antes da consulta para passar para o papel tudo aquilo que quero conversar com o neurologista. Na capa do caderno está escrito “I’ll do it my way”. E foi precisamente essa capa que me fez trazer o caderno para casa. Porque, sim!, vou fazer tudo à minha maneira. O neurologista dá-me as setas informativas dos próximos passos a dar e, dentro do que é previsto ter que acontecer, tudo o que é previsto ter que fazer, irei cumprir sempre. Mas, de alguma forma, será sempre à minha maneira.
